Angola Brasil Cabo Verde Galiza Guiné-Bissau Guiné-Equatorial Índia Portuguesa Macau Moçambique Portugal São Tomé
Home    Televisão    Sobre    Cadastro    Embaixadores da RIL    Nosso Blog    Nosso Facebook    Voluntariado

Este é o nosso blog de discussão das lusofonias.

Iniciamos a discussão com uma frase de Machado de Assis:

"Língua Portuguesa – é casta para os castos, como pode ser torpe para os torpes"

'Os Lusíadas': a obra que 'fundou' a língua portuguesa há 450 anos

Pintura da nau de Vasco da Gama, feita no século 19 por Ernesto Casanova CRÉDITO,DOMÍNIO

"As armas e os barões assinalados,/ Que da ocidental praia Lusitana,/ Por mares nunca de antes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana,/ Em perigos e guerras esforçados, / Mais do que prometia a força humana, / E entre gente remota edificaram/ Novo reino, que tanto sublimaram."

Assim começa a obra que pode ser considerada a certidão de nascimento da língua portuguesa. Publicada em 12 de março de 1572, há 450 anos, a célebre criação do poeta Luís Vaz de Camões (nascido provavelmente no ano de 1524 e morto provavelmente em 1580) é formada por dez cantos, 1.102 estrofes e 8.816 versos, todos em oitavas decassilábicas, sempre arranjados em um esquema rímico fixo.

Trata-se do poema épico Os Lusíadas, que narra a descoberta, pelo navegador português Vasco da Gama (1469-1524), da rota marítima para a Índia — um marco nas relações comerciais e exploratórias do século 15 e, de certa forma, a consolidação de um momento historicamente relevante para Portugal.

Ao longo de seu texto, o poeta, que se dirige ao rei Sebastião I (1554-1578), evoca episódios da história lusitana de forma épica, sempre buscando glorificar o povo português.

Mas a grandeza de Os Lusíadas não se resume ao engenhoso e esmerado formato adotado por Camões, nem pelo grande número de versos, tampouco pelas próprias histórias de heroísmo ali narradas.

Os Lusíadas se tornou um marco pelo uso da língua portuguesa — na época chamada apenas de "linguagem", quase como de modo pejorativo quando comparada ao jeito culto de se expressar por escrito, ou seja, o latim.

E, protagonista e fruto de um momento histórico de valorização de tais identidades, a obra é reconhecida como uma espécie de literatura fundadora do idioma hoje oficialmente praticado em Portugal e em outros oito países, inclusive o Brasil.

Doutor em estudos literários pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e criador do canal no YouTube Elite da Língua, o professor Emerson Calil Rossetti situa Os Lusíadas como "a maioridade e a identidade poética da língua portuguesa".

"Constituem de fato uma referência para e sobre a língua portuguesa. Não somente por ser uma obra-prima, o que é hoje consensual, mas por ser a primeira produção do idioma que alcança prestígio para além das fronteiras de Portugal ou dos países lusófonos", argumenta ele.

"Camões captou com precisão o espírito da Renascença, tomando como base as epopeias antigas e construindo seu longo poema com soluções estéticas típicas da perfeição formal da época mas a partir das possibilidades expressivas da nossa língua, como jamais se havia visto", analisa Rossetti.

"É o caso, por exemplo, do ritmo bem marcado e regular dos decassílabos heroicos e, num universo repleto de alusões históricas, mitológicas e cristãs, as combinações de rimas que caracterizarão, igualmente, as 1102 estrofes da epopeia."

Professora livre-docente da Universidade de São Paulo (USP), onde é pesquisadora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, a linguista Marcia Maria de Arruda Franco contextualiza a obra como parte de um momento de "dignificação da língua portuguesa como língua de cultura".

"Até o século 16, era muito raro que um autor em Portugal escrevesse em português. E mesmo ao longo do século 16, as línguas de cultura preferidas dos letrados, tanto os humanistas puros que usavam o latim, como os impuros que usavam as línguas vulgares, era o castelhano ou o latim em vez do português", esclarece ela.

Franco lembra que esse movimento vinha sendo experimentado por alguns escritores, como é o caso de Sá de Miranda (nascido provavelmente em 1487 e morto em 1558), "que ousavam essa aventura de descobrir o valor letrado da língua portuguesa, de trabalhar sobre sua elocução, de escrever em português".

"Ao longo do século 16, vários vão levar a cabo essa tarefa de escolher a língua portuguesa como língua de cultura. Não só no discurso poético, mas também no discurso histórico. [O idioma está presente] nos cronistas que escrevem sobre as grandes descobertas, quando a língua portuguesa é a preferida", conta ela.

Vale ressaltar que já desde o reinado de Manuel I (1469-1521), médicos portugueses eram obrigados a efetuar suas prescrições em língua portuguesa. "Em 'linguagem', como eles diziam. Naquela língua falada, que todo mundo entendia", comenta a professora.

Era um período de ebulição acadêmica, na qual os linguistas se propunham a entender e explicar a organização daquilo que se falava. "Começa a surgir a filologia portuguesa, uma série de gramáticas em defesa da língua portuguesa como língua de cultura, e não mais apenas como 'linguagem'", contextualiza Franco. "'Os Lusíadas' culminam esse processo, fazem com que esse processo se consolide."

"Porque 'Os Lusíadas' são escritos em gênero épico, sublime. Relaciona-se às épicas da cultura clássica ocidental, da cultura antiga, que era modelizada pelos renascentistas. 'Os Lusíadas' estão em linha direta com outras épicas, de Homero [da Grécia Antiga] e de Virgilio [da Roma Antiga]", diz a linguista.

Para o escritor Ênio César Moraes, professor de língua portuguesa e assessor pedagógico do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília, a importância de Os Lusíadas pode ser dividida entre os aspectos literário e histórico.

No primeiro quesito, o mérito recai sobre "o fato de se tratar de uma epopeia, obra épica que, no plano artístico-literária, põe Portugal ao lado de nações como Grécia e Roma". Moraes observa que, não à toa, o próprio narrador do poema "afirma, altaneiro": "Cessa tudo o que a Musa antiga canta/ Que outro valor mais alto se alevanta". "[Está] enaltecendo a temática da obra, em comparação às produções grega e romana", interpreta.

Já o segundo ponto está no fato de que o texto de Camões é a "narrativa de grandes feitos do povo português, na pessoa de Vasco da Gama, à época das grandes navegações".

"Virgílio [o poeta romano] é o grande interlocutor de Camões. E com esse trabalho ['Os Lusíadas'], ele engrandeceu o português e o consolidou como língua de cultura. Fez isso graças ao seu trabalho de escrever com tropos, figuras, imagens, um todo. Realizou um trabalho sobre a prosódia dos versos, escolhendo os decassílabos, a oitava para urdir o seu poema, sua épica… Trabalhou a elocução da língua portuguesa", complementa Franco.

Shakespeare, Alighieri…

A obra garantiu a Camões o mesmo lugar na língua portuguesa ocupado por William Shakespeare (1564-1616) no inglês, Dante Alighieri (1265-1321) no italiano, François Rabelais (1494-1553) no francês, e France Prešeren (1800-1849) no esloveno. Em suma, cada língua considerada moderna tem no trabalho de um grande escritor a consolidação de suas bases e a matriz de suas normas.

"Camões representou esse movimento de defesa e ilustração das línguas ditas vulgares, faladas no dia a dia. Que foi geral na Europa, quando todas as línguas nacionais dos reinos passaram a ser utilizadas também na língua de cultura, em detrimento do latim", diz a linguista Franco.

"Em Portugal, havia a opção entre duas línguas vulgares: o castelhano e o português. Mas cada vez mais os letrados preferiram escrever em português", acrescenta ela.

Por que as pessoas ainda acreditam no mito da alma gêmea

'Sempre fui mediano em literatura': americano ajuda a decifrar carta 'criptografada' há 150 anos pelo escritor Charles Dickens

Camões mesmo já havia escrito poemas em espanhol. Decidiu utilizar o português para Os Lusíadas e, logo em seguida, sua obra também foi traduzida — ainda no século 16, ganhou três traduções para o castelhano e pelo menos uma publicação em latim, conforme pesquisas de Franco.

"Do ponto de vista da história da evolução da língua, o português atinge seu estágio moderno exatamente no século 16", ensina Rossetti. "É quando o idioma se uniformiza e adquire as características básicas que ainda hoje se reconhecem nas nossas gramáticas."

"A obra de Camões assimila essa nova feição e legitima as potencialidades da nossa língua como expressão poética de temas universais e aspectos atemporais acerca da condição humana. Por meio dos recursos fônicos, morfológicos e sintáticos, o escritor confirma o potencial também inventivo: a natureza literária do idioma. Nesse sentido, a língua portuguesa torna-se, pela sua pena, uma herança cultural, modelo de possibilidades de exploração criativa", diz ainda o professor. "Por isso, Camões é patrimônio, como também Shakespeare e Dante."

Rossetti lembra que a partir das letras de Camões abriu-se um "espaço para outros gênios do pensamento ocidental" em língua portuguesa. "É um novelo de muita linha, e a primeira ponta desse fio se chama Camões", resume.

Professor Moraes ressalta que a época em que o poeta viveu, o Renascimento, foi marcada por efervescência científica e artístico-cultural. Assim, com Os Lusíadas, ele "deu visibilidade ao povo português, ao ressaltar feitos grandiosos do presente, as grandes navegações" e também garantiu "importante referência para os estudos filológicos e linguísticos promovidos nos séculos seguintes".

"Como sabemos, a língua é um dos principais elementos de identidade nacional, e o excelso caráter nacionalista da sua narrativa exalta, para além do conteúdo, a língua portuguesa. Não é à toa que, até hoje, o poeta português figura como um dos maiores nomes da literatura lusófona", pontua ele.

Apenas no vestibular?

Quatrocentos e cinquenta anos depois, por que vale a pena ler Os Lusíadas ainda hoje? Para os especialistas, não se trata apenas de uma obra "para o vestibular" — o livro pode e deve ser lido como cultura geral, principalmente por pessoas lusófonas.

"[Seus versos] são uma aula de retórica. Quem quiser aprender retórica que leia 'Os Lusíadas', entenda toda aquela estrutura persuasiva", defende Franco.

"Sua estrutura persuasiva, ele [o poeta-narrador] quer convencer o rei [português] de alguma coisa, convencê-lo a continuar essa aventura, essa luta dos portugueses para manter seu império", explica a linguista.

"Bem, os clássicos são os clássicos. E isso responderia à questão [sobre as razões para se ler Camões hoje] de forma simplista mas eficiente", acrescenta Rossetti. "Para ser, então, mais exato e pontual, diria que obras como 'Os Lusíadas' têm a ver com a nossa história: a cultura, as crenças, as reflexões, os valores, a memória."

Para o professor, "não se pode construir um projeto futuro sem o conhecimento e a devida compreensão do passado, sobretudo quando ele ainda faz tanto sentido nos dias de hoje". "Afinal, continuamos seres desbravadores, vibramos com as conquistas que ampliam os limites da geografia e do conhecimento, sentimos emoção diante das histórias de amor ainda que com cores trágicas", analisa.

Além disso, ele ressalta a questão da lusofonia. "Principalmente, falamos a mesma língua e precisamos, provavelmente mais que no século 16, de exemplos inteligentes, admiráveis e sensíveis: necessitamos sempre de boa poesia, de qualquer período, visto que os clássicos não envelhecem", conclui.

Moraes defende que "ter contato com os clássicos" é fundamental para a "construção do repertório artístico-cultural do indivíduo". "Nenhuma obra se torna um clássico por mero trabalho de marketing", argumenta.

"No caso das epopeias, ainda mais", compara. "Como se não bastasse a magnitude da forma, tem-se a maravilha do conteúdo, que nos conduz 'por mares nunca dantes navegados'. Ademais, propicia o estudo do passado histórico, sob a perspectiva poética. Inclusive, pode proporcionar um interessante trabalho comparativo entre os ofícios do historiador e do escritor-artista."

Problematizações contemporâneas também são possíveis, é claro. E, se compreendidas dentro de cada contexto histórico, podem gerar reflexões sem cair em anacronismos. Franco frisa que não se pode esquecer que, em seu conteúdo, Os Lusíadas "sublinham essa coisa que a gente considera horrível: a ideologia imperialista, cruzadista".

"É um monumento ao poder e não deixa de ser um pouco chocante para nossos ouvidos, por exemplo, o modo preconceituoso como os mouros são apresentados na obra", exemplifica. "Isso não é do poeta. É do gênero [épico] e é da época. Por isso que a crítica contemporânea brasileira apresenta uma leitura de 'Os Lusíadas' que salienta sua contradição, justamente o elogio e o questionamento da posição invicta e hegemônica portuguesa."

Por outro lado, também é importante ressaltar que a obra é um retrato daquilo que pode ser considerada a primeira globalização. "Essas 'descobertas' dos navegadores se tornaram importantes como a primeira ligação planetária da Terra, a primeira vez que todas as culturas entram em contato e se tem essa visão do globo. Isso vai ser sempre importante", diz Franco.

"Podemos dizer que são questionáveis, já que no encontro de culturas a diversidade acabou esquecida e apagada, reprimida pelo eurocentrismo que doutrina o mundo… Mas 'Os Lusíadas' vão sempre ter a importância de relatar esse primeiro contato entre culturas, ainda que em confronto de poder entre o europeu hegemônico e os outros povos subjugados.

A Lusofonia é uma capela sistina inacabada; é comer vatapá e goiabada, um pastel de bacalhau ou cachupa, regados com a timorense tuaka ao ritmo do samba ou marrabenta; voltar a Goa com Paulo Varela Gomes, andar descalço no Bilene com as Vozes anoitecidas de Mia Couto, ler No país de Tchiloli da Olinda Beja, rever os musseques da Luuanda com Luandino Vieira, curtir a morabeza cabo-verdiana ao som De boca a barlavento de Corsino Fontes, ouvir patuá no Teatro D. Pedro IV na obra de Henrique de Senna-Fernandes e na poesia de Camilo Pessanha; saborear a bebinca timorense em plena Areia Branca ao som das palavras de Francisco Borja da Costa e Fernando Sylvan, atravessar a açoriana Atlântida com mil e um autores telúricos, reencontrar em Salvador da Bahia a ginga africana, os sabores do mufete de especiarias da Amazónia, aprender candomblé e venerar Iemanjá, visitar as igrejas e casas coloridas de Ouro Preto, Olinda, Mariana, Paraty, Diamantina, e sentir algo que não se explica em Malaca, nos burghers do Sri Lanka, em Korlai ou no bairro dos Tugus em Jacarta. É esta a nossa lusofonia. (Chrys Chrystello abril 2019)

Sobre o texto da primeira página do blog recebemos do Sr. Manuel Miragaia o seguinte comentário:

"Começo pelo final.

A grande maioria dos reintegracionistas querem hoje em dia que na Galiza o galego se escreva como o português, mas conservando a fonética galega e muito do rico vocabulário ou léxico galego. Entendem que o galego, como o português do Brasil, uma variante da mesma língua.

Só há uma parte muito pequena de reintegracionistas que se querem aproximar ao português mas de jeito limitado, com ortografia não totalmente idêntica, por exemplo, nos finais de palavra em ão, que seria para eles om. Nação-naçom e também diferente em alguns verbos do português. Estes reintegracionistas, próximos à direção da AGAL repito, são uma minoria muito reduzida dentro do movimento reintegracionista galego.

Também incluiria no texto o seguinte:
O galego era a língua românica que nasceu no território ocupado pela província romana de "Gallaecia" -a sua capital era a povoação de Braga-, que abrangia o território da Galiza e o do Norte de Portugal. Ninguém discute que no começo da Idade Média o galego era a língua de todo o Noroeste da Península Ibérica. Ainda não se falava do português.

Muitos filólogos galegos, portugueses, brasileiros e doutros países consideram que ainda no presente o galego e o português são duas variantes da mesma língua. Mesmo entre as pessoas mais qualificadas que escrevem o galego com ortografia do castelhano a maioria pensa que são a mesma língua. Saudações cordiais, Manuel Miragaia"

 

A importância e história da língua portuguesa.

O português faz parte das línguas românicas e é derivado do latim, idioma originado na Itália e que se expandiu pela Europa junto com o domínio do Império Romano.

Entre os séculos III e II a.C., o latim chegou ao sul do continente europeu, onde hoje, se localizam Portugal e Espanha. No século V d.C., quando o Império Romano caiu, a Península Ibérica já estava latinizada e, portanto, o latim já era a língua falada pelos povos que habitavam os países ibéricos.

A língua foi se transformando e, com a influências dos povos bárbaros, que invadiram a região, surgiu o chamado “galego-português”, que também é conhecido como “galaico-português”.

A separação do galego e do português ainda gera polêmica entre os historiadores, que divergem em relação à data e aos acontecimentos que levaram a isso. Já para os linguistas, esse momento é mais claro, tendo sido iniciado em 1185, com a independência de Portugal, efetivando-se anos mais tarde.

De acordo com Maria Cristina de Assis, autora do livro “Histórias da Língua Portuguesa”, “a separação entre o galego e o português, que começou com a independência de Portugal (1185), vem se efetivar com a expulsão dos mouros em 1249 e com a derrota em 1385 dos castelhanos que tentaram anexar o país. O galego foi absorvido pela unidade castelhana e o português tornou-se a língua oficial nacional de Portugal”.

Já Álvaro Iriarte Sanromán, diretor do Departamento de Estudos Portugueses da Universidade do Minho, em Braga, defende o mesmo que a Korn Traduções já comentou em alguns de seus textos: a língua é dinâmica e, portanto, está em constante evolução. Por esse motivo, ele considera mais importante entender que a língua é um instrumento vivo, ao invés de definir um marco para a separação dos idiomas.

Por fim, outro fato histórico que ajudou no fortalecimento da língua portuguesa foi a expansão marítima de Portugal, no século 15, fazendo com que o idioma fosse disseminado pelas suas colônias e tendo, muitas vezes, o uso de outras línguas proibido.

Língua Portuguesa: uma das mais faladas no mundo

Hoje, a língua portuguesa é a sétima mais falada do mundo, sendo o idioma nativo de nove países e tendo o Brasil com o maior número de falantes (208,8 milhões). Além disso, apenas Brasil, Portugal e São Tomé e Príncipe tem o português como única língua oficial.

'Não se pode dizer que o português evoluiu do galego, ou vice-versa. Houve, sim, uma fase arcaica, durante a Idade Média, denominada galego-português, que vinha a ser o idioma falado nas duas margens do Minho. Com a nossa independência, o galego propriamente dito passou a girar na órbita política e linguística do castelhano, enquanto o português se foi diferenciando, sobretudo devido à influência do moçárabe, desenvolvido no centro e, sobretudo, no Sul do País.

Os Celtas não eram aparentados com os Vascos ou Bascos, mas os Lusitanos, os nossos antepassados mais conhecidos, eram, de facto, celtas (ou melhor, celtiberos) e deviam falar uma língua da família céltica, muito aparentada com a itálica, a que pertencia o latim, trazido para a Península pelos Romanos (soldados, funcionários e colonos), na sua forma vulgar.

Há estudos sobre toponímia galego-portuguesa, designadamente Os Nomes Germânicos na Toponímia Portuguesa, de Joseph Piel. Alguns escritores romanos referiam-se à língua falada pelos Lusitanos, mas sempre sem entrar em pormenores. '

Na ponta da língua: o que é lusofonia?
Etimologia e interpretações críticas

A cada pergunta, no mínimo duas respostas há: aquela breve, enxuta, outra mais ampla e, às vezes, divagante. No que diz respeito à resposta curta, a palavra “lusofonia” explica a si mesma. Trata-se de justaposição das entradas “luso”, que do latim quer dizer “relativo a lusitano”, e “fonia”, essa já vinda do grego, equivalente a “língua”. Trocando em miúdos, lusofonia pode ser entendida como “qualidade daqueles que falam a língua dos lusíadas”, lusos ou portugueses.

Se a pulga atrás da orelha pulou, fica o rodapé: Lusitânia foi o nome atribuído a uma província ibérica, correspondente hoje à parte da Espanha e de Portugal.

Assim como a palavra “lusíadas”, Lusitânia vem de “Lusus”, figura legendária ligada a Baco e creditada como fundadora mitológica da região.

Desse literal boca-a-boca etimológico, viria inclusive o título da magistral obra de poesia épica escrita por Camões nos idos dos séculos XVI, “Os Lusíadas”... percebem como já passamos à segunda forma de responder uma pergunta, aquela mais ampla e que incorre na possibilidade da perda do fio da meada? Façamos, então, neste espaço curto, alguns sobrevoos que poderiam ser longos.

A lusofonia, celebrada ao 5 de maio, é também entendida como uma comunidade de 9 países espalhados no globo cuja língua materna, administrativa ou secundária é o português. Essa população esparsa de cerca de 280 milhões de pessoas tem corpo institucional na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, fundada em 1996 com o objetivo de aproximar os estados-membros por meio da cooperação financeira e cultural. Por sinal, sabia que a mencionada CPLP promove uma espécie de Jogos Olímpicos dos falantes de português, os Jogos da Lusofonia? Se não, calma, assim como ocorreu ao passar a saber quem foi Lusus, pouca coisa vai mudar em sua vida.

O que talvez mude, ou incomode pelo menos, é a interpretação de intelectuais, como Adriano Freixo, quem defende que, salvo para Portugal, a CPLP seria desprovida de sentido para os seus membros. Para ele, a instituição teria sido originada nos interesses específicos portugueses, com a busca de reinserção internacional no cenário de pós-Guerra Fria por meio da aproximação às ex-colônias.

Na mesma linha crítica, o português Boaventura de Sousa Santos aponta que a CPLP está demasiadamente focada em Brasil e Portugal. Nem tudo são flores ou mera etimologia, não é?

Atalhando o escrito: afinal, o que é Lusofonia? Bem, mais do que conceitos aqui entregues, lusofonia parece não ser nem a resposta curta, nem aquela mais longa, embora permeie ambas. Ao meu lusófono, parcial e amador ver, lusofonia parece ser uma “vivência”, ou experiência, que articula tacitamente distintas visões de mundo sob um mesmo nome que não comporta todas suas particularidades. Falar em “trama de diferenças”, como afirmou Laura Padilha, ou mesmo em “lusofonias”, aparenta ser o mais acertado; isso já é, porém, o pontapé para uma discussão ampla.

GABRIEL FERNANDINO | MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA (UFMG) E BACHAREL EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS (PUC MINAS)
 

Era um mundo novo / Um sonho de poetas / Ir até ao fim / Cantar novas vitórias /E erguer, orgulhosos, bandeiras / Viver aventuras guerreiras / Foram mil epopeias / Vidas tão cheias /Foram oceanos de amor / Já fui ao Brasil / Praia e Bissau / Angola, Moçambique / Goa e Macau / Ai, fui até Timor/ Já fui um conquistador / Era todo um povo / Guiado pelos céus /Espalhou-se pelo mundo /Seguindo os seus heróis / E levaram a luz da tortura/ Semearam laços de ternura Foram dias e dias e meses e anos no mar / Percorrendo uma estrada de estrelas a conquistar
Da Vinci, na Eurovisão, 1989

A África é algo mais do que uma terra a ser explorada; a África é para nós uma justificação moral e uma razão de ser como potência. Sem ela seríamos uma pequena nação; com ela somos um grande Estado.
Marcelo Caetano, 1935


No meio das convulsões presentes, nós apresentamo-nos como uma comunidade de povos, cimentada por séculos de vida pacífica e compreensão cristã, irmandade de povos que, sejam quais forem as suas diferenciações, se auxiliam, se cultivam e se elevam, orgulhosos do mesmo nome e qualidade de portugueses.

Salazar, 1933

“É uma ponte que se constrói, uma ponte que une as margens distintas das identidades culturais de cada um dos países de língua oficial portuguesa, uma ponte que pretendemos inscrever no nosso imaginário colectivo, num encontro cultural único, que amplie o nosso olhar sobre os outros e sobre nós próprios, fortalecendo indelevelmente os laços que nos unem e a nossa forma de estar no mundo.”
Jorge Couto, ex-presidente do Instituto Camões, a propósito de uma publicação durante a Expo 98.

A lusofonia poderá ser o conjunto de identidades culturais existentes em países, regiões, estados ou cidades em que as populações falam predominantemente língua portuguesa: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Macau, Timor-Leste e diversas pessoas e comunidades em todo o mundo. Haverá entre estes países lusófonos relações privilegiadas - na cooperação política e económica (situação prodigiosa de unir as duas margens do Atlântico), na educação e nas artes – grandes criadores que manejam a língua de forma criativa, inventam outras pátrias de Camões, contribuindo com a sua obra para ampliar a interculturalidade lusófona: Pepetela, José Craveirinha, Saramago, Jorge Amado, Luandino Vieira e tantos outros.
Essa delimitação imaginária será geográfica, de poder, de identidade, de descrição comum, mas é, antes de mais, um projecto, uma construção artificial, como são todas as fronteiras, nações e conjuntos de nações3.

Neste espaço, que se convencionou chamar de ‘lusófono’, partilha-se a mesma língua nas suas várias recriações. É certo e fantástico: viaja-se numa floresta tropical, no rio do Amazonas, nas montanhas de Díli, numa estrada da Huíla e podemos conversar em português, vamos a um café em Bissau ou uma esplanada em Cabo Verde e gozamos o momento de ler o jornal na nossa língua (ainda que nem sempre em português nos entendemos, pois para muitos a língua oficial é uma língua estrangeira que cumpre apenas funções administrativas).

Que identidades culturais partilham estes países para além da especificidade da língua (que já é muito) e do destino de emigração ser a antiga metrópole? Porque têm de ser tomados em conjunto, como um pacote de países, estas diferentes culturas a quem aconteceu terem sido esquartejadas em países colonizados pelo mesmo poder central? E de que se trata quando se pretende fortalecer a “nossa forma de estar no mundo”? Que olhar é esse nosso olhar? Quem é este nós? À partida um ‘nós’ é feito de coisas muito diversas e, se referido ao português, devia ser o oposto de um motivo de orgulho.

A lusofonia depende da “narração de uma certa história da colonização portuguesa, que justifica um certo presente” (como referiu António Tomás, explicando como era necessário contar histórias alternativas, por exemplo a de Amílcar Cabral4), pois se o presente se faz da reaplicação de narrativas fundadoras, quase todas aleatórias e/ou construídas, e de interpretações da história, se as histórias forem outras o presente implicitamente o será. Mas até agora o que existe são estes discursos ancestrais que passaram, com uma nova maquilhagem, a ser ‘senso-comum’. A lusofonia, apesar de actualizar o passado colonial e protelar o imaginário imperial, não é incomodativa porque se revestiu de um discurso arejado, menos chato do que a celebração dos descobrimentos, ainda que dela se alimente.5 E a retórica da interculturalidade - como a Expo 98, o Ano Europeu do Diálogo Intercultural em 2008 e outras efemérides - dá-nos a sensação de estarmos num espaço que se pretende politicamente correcto e preocupado com as questões fundamentais aliás de como viver com o Outro. Porém, tal discurso contém os seus perigos quando “manifesta um desejo utópico de retratar a história e as relações entre diferentes comunidades ao nível global, como sendo uma relação sem poder, sem conflito.” (Vale de Almeida, 1998: 237) Ou seja, tende a elidir o processo marcado pelo conflito e pelas relações de poder, retrabalha o passado de forma celebratória e não problematizante.

Precisamos pois de perceber melhor o que está por detrás de todos estes discursos - produzidos de acordo com as políticas e ideologias mais viáveis - no sentido de “evitar a recepção acrítica de tendências particulares, evitando assim que estas sejam apressadamente generalizadas ou universalizadas” (Sanches, 2007: 10), e no interesse de pensar mais pelas dúvidas do que pelas certezas vinculadas na narrativa da História.
Refiro-me à lusofonia (discurso oficial e práticas) no enfoque da relação Portugal / países africanos de língua portuguesa. O caso do Brasil (na sua dimensão continental) ou terras asiáticas são fenómenos diferentes embora enquadrados na mesma lógica.



Promoção de lusofonia


Apesar do discurso aparentemente empenhado da lusofonia, na realidade não existe verdadeiramente uma consciência lusófona, não há lóbi lusófono na ONU ou na OMC (pelo menos se compararmos com a francofonia), nem tem assim tanta coesão, nem no plano económico nem político. Nem em termos de identidade: quase nenhum africano ou brasileiro se afirma enquanto ‘lusófono’ (só ouço portugueses falarem disso).

O que une os “lusófonos” afinal hoje em dia, que ‘potencial’ é este para o qual devemos encontrar uma estratégia de consolidação? Será então a partilha de cultura: conhecimento das histórias e literaturas uns dos outros, gostos culinários, musicais, o futebol?

Se assim for, a dúvida persiste no que toca à estratégia dos promotores da lusofonia, uma vez que o desinteresse é a tónica dominante nas várias áreas de expressão. Como questionava Kalaf numa crónica do Público: “Será que nos interessamos realmente pela lusofonia? Ou este é um conceito que serve tão-só a maquinação mediática? O Brasil, aparentemente, pouco se importa com a actualização deste luso-qualquer-coisa e Angola está a seguir o mesmo caminho.”

Este desinteresse provirá talvez do facto das práticas também remontarem ao passado. Os agentes de promoção da lusofonia ainda funcionam como centro cultural na ‘metrópole’ que subsidia os vários representantes no terreno sem qualquer noção das realidades desses países, sem estratégia conjunta de programação, etc. O espaço lusófono acaba por ser a tal “bolha onde tudo é possível e tudo se consome”, retomando a ideia de Lívia Apa, “um mundo criado pelo ‘laço’ da língua portuguesa, dentro do qual os escritores transitam, se movem, trocam visitas, falam, escrevem, são lidos, mas fora do qual eles próprios não conseguem encontrar o seu lugar, como se fossem até incapazes de ter acesso ao que acontece fora da lusofonia.

Por exemplo, os escritores africanos lêem pouco os outros africanos não lusófonos.”8

O fechamento para outros espaços como reflexão cria essa bolha de protecção nas rédeas de um circuito fechado e alienante. O facto da produção literária passar pelo mercado português para ser legitimada (o cânone produzido de forma exógena), e nessa obrigação ter como porta de acesso o ‘exótico’, a única permitida pois o mercado sabe bem fazer rentabilizar a ‘diferença’, por vezes condiciona a própria forma de escrever (como se se escrevesse para português ler), praticando uma tradução cultural de si-mesmos. Os escritores africanos pouco lidos nos seus países de origem são-no mais na Europa, onde há mais leitores, e também aqui pode pôr-se a hipótese, como avançou Inocência Mata, de uma reedição da política do assimilacionismo cultural e de continuidade do império na cultura. (Mata, 2007: 288)

A língua portuguesa era o suporte do Império e hoje é o suporte da lusofonia no que concede de possibilidade de universalismo. Para reforçar esta partilha há que promove-la, o que não tem mal nenhum se não se partisse do princípio de que cabe aos portugueses o controlo da língua portuguesa. Desta forma, escreve Alfredo Margarido (2007), “a língua deixaria de ser um instrumento capaz de ser utilizado por qualquer grupo ou mesmo indivíduo, pois seria não só a criação mas sobretudo propriedade dos portugueses. Se partirmos do princípio que a língua pertence àqueles que a falam, regista-se uma profunda autonomia dos locutores de português. Se esperamos que a língua continue a expandir-se, devemos em contrapartida refrear o instinto de dominação que continua a marcar a sociedade portuguesa.” Veremos agora em relação ao novo acordo ortográfico o que vai mudar neste capítulo, bem presente nas vozes mais conservadoras deste debate.

É como se a língua, o património dos falantes de português, fosse o último território que ficou por descolonizar, como sugeriu o escritor timorense Luís Cardoso no colóquio acima referido.

Mas só que quem está a dar cartas desta vez, num processo autofágico de pegar na norma e subvertê-la, ao contrário do colonialismo linguístico pretendido, são outros: “reinventamos o português, os tugas a aprenderem connosco, somos colonos desta vez” rapa o angolano Kheita Mayanda no tema “É dreda ser angolano”. E é equacionando estas variantes todas do português, com muitos mais falantes e criatividade, sem sobreposição da norma do suposto ‘centro’ da língua, que a língua portuguesa se enriquece.

A música poderia ser a excepção, onde o discurso do “espaço lusófono” faria algum sentido uma vez que, desde o séc. XV, tem sido um elemento de fortes trocas culturais percebendo-se a saudável contaminação dos ritmos e conhecimento das origens da música nos vários países de língua portuguesa. Exemplos: o fado que é da família do lundum e da morna; a curiosidade dos cantautores de intervenção portugueses pelas sonoridades da música africana e brasileira; a partir dos anos 90, a alavanca de projectos como Rap Mania ou Kussondolola (que fez a ponte com África na cultura jovem) e, hoje em dia, inúmeras bandas de fusão. A música que circula na cultura urbana recupera o semba, mornas, e apresenta imensos pontos de contacto entre as várias culturas.

Apesar da lusofonia musical ser uma realidade constatada, mais uma vez o próprio projecto lusófono se desintegra na prática. As produtoras portuguesas andam a dormir. No filme Lusofonia, Sons da (R)evolução os músicos e agentes musicais lamentam a falta de investimento nacional e terem de recorrer a editoras não portuguesas (sobretudo francesas e holandesas, no caso das cantoras Lura, Cesária Évora, Sara Tavares, Mariza) com melhores condições, da gravação à promoção passando pelos prémios. As editoras portuguesas estão desatentas à fonte inesgotável de boa música da noite afro-lisboeta, não acreditam e não cuidam do seu ‘património linguístico’ - a música em língua portuguesa ou crioulo em muitos casos - como mercado de confluência de culturas. Por complexos, falta de visão? De vez em quando descobrem incríveis fenómenos como o kuduro progressivo, caso dos Buraka Som Sistema. Mas mesmo assim, o kuduro, sobretudo o original e dos guetos, é subaproveitado no seu potencial: “se fosse de Berlim, Nova Iorque ou Londres o kuduro era uma música do mundo” diz, no mesmo filme, o crítico Vítor Belanciano.

Nas artes plásticas parece que a maioria das abordagens vão de encontro a um espírito que cristalizou uma ideia de arte africana, tradicional e ao gosto dos africanistas. Ou para satisfazer um mercado ávido de naif e novos primitivismos, bastante condescendente e que sobrevaloriza os contextos dos artistas em relação à sua arte. De vez em quando há iniciativas que reflectem uma visão contemporânea e introduzem uma série de questões ligadas às teorias pós-coloniais, mas colocam sempre o enfoque na tal devolução da imagem de um centro: os vestígios dos portugueses em África, ou como os africanos vêem os portugueses cá, ou os descendentes de colonizados descobrem as suas origens, etc. Outros eventos passam à margem da aglomeração lusófona (e do próprio meio artístico português).

Estes exemplos de má promoção da lusofonia acabam por convergir na ideia de que não se tem investido a sério neste espaço, cuja sustentação não é desinteressada. Os laços criados entre as culturas destes países existem naturalmente nas histórias de vida, a maioria delas empurradas pela realidade anterior de criação de colónias, que leva agora a que se emigre para o sítio de onde esses que as povoaram partiram (e outros, no fluxo contrário, partem à procura do el dourado do investimento em África), ou por questões de guerra, economias desmembradas, desemprego, estudo, desamor, ou mil razões que fazem as pessoas circular para realidades nem sempre acolhedoras, mas que proporcionam a recriação da sua identidade.
A herança da história trágico-marítima foi transformada em discursos sobre ‘pontes’ e laços culturais, depois de uma vez se terem criado pontes aéreas para fugir da insustentabilidade de uma situação ideológica que eram as colónias. E toda essa partilha que se pretende efectiva actualmente, é também ela ideologicamente questionável, com interesses e práticas que insistem nos mesmos termos e dados do jogo.
É preciso auto-reflexividade para estancar a reprodução dos mitos do antigamente.

Questionar as bases deste modelo e defesa da lusofonia poderá ser um princípio para uma mudança de paradigma: interessa lidar com subjectividades e particularidades, contextualizando de onde vêm estas relações, e não com abstractos conjuntos de países que, além da língua e de episódios históricos, não se revêem necessariamente nesse bonito retrato de família que Portugal quer passar e do qual faz uso sempre que lhe convém.

Publicado na revista Jogos Sem Fronteiras, edições Antipáticas, Julho 2008

 

O Movimento Internacional de Divulgação e Promoção da Lusofonia não tem dono.

Se é verdade que a Língua Portuguesa não tem dono e se democracia é composta por maiorias, a Lusofonia e o Movimento Internacional Lusófono deveria dar mais voz ao Brasil. O Brasil é o País que tem mais falantes da Língua Portuguesa no mundo e o único no Continente Americano de Língua Portuguesa. Continente dominado pelo Espanhol.

Filipe de Sousa

Lusofonia: uma mera concepção doutrinária


Tive a oportunidade de ler atentamente o texto de opinião do escritor José Luís Mendonça, em defesa do conceito de “lusofonia”, com o qual ele aparentemente concorda e com o qual eu discordo, pelo simples facto do mesmo se situar no âmbito doutrinário e não sociológico.
José Luís Mendonça, ao citar a definição de lusofonia no Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, refere-se simplesmente ao ponto 2: “Comunidade formada pelos países e povos que têm o português como língua materna ou oficial. Difusão da língua portuguesa no mundo.” Mas omite, propositadamente, o ponto 1: “Qualidade de ser português, de falar português; o que é próprio da língua e cultura portuguesas.” Porque o fez?

Também poderia ter apresentado outras definições, a título de exemplo, que já constaram da Wikipédia “enciclopédia livre”: como sinónimo de “portuguesofonia” e entendida como “o conjunto de identidades culturais existentes em países, regiões, Estados ou cidades falantes da língua portuguesa, como Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e por diversas pessoas e comunidades em todo o mundo”. Mais tarde, esta definição foi retirada da Wikipédia e surgiu uma outra: “conjunto de algumas identidades culturais existentes em países, regiões, Estados ou cidades falantes da língua portuguesa como Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Goa e por diversas pessoas e comunidades em todo o mundo” [em 15/09/2014].

Na realidade, o termo “lusofonia” parece ter surgido apenas no período pós-colonial, já que o Dicionário Prático Ilustrado, editado em 1977, pela Lello & Irmão Editores, com 2.026 páginas e mais de 100.000 vocábulos, à época, auto-intitulado de Novo Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro, é totalmente omisso em relação à palavra “Lusofonia”, mas refere-se à palavra “luso” como sendo: o “nome do suposto fundador da raça lusitânica”; sinónimo de “Português”, de “Lusíada” e de “Lusitano”.

Se antes chegou a admitir-se o termo “portuguesofonia”, porque não “Palopofonia” como neologismo, se as vertentes de identidade são de origem cultural, histórica e política? Estas vertentes estão mais próximas dos PALOP do que do Brasil, Portugal, Goa, Macau e Timor Leste, pelas seguintes razões: Há uma mesma pertença identitária africana (e até civilizacional bantu, como no caso de Angola e Moçambique); Há a mesma submissão colonial de meio milénio, com contacto permanente de cinco séculos com a língua e a cultura portuguesa; Há diferentes formas de reivindicação protonacionalista e associativista que evoluíram para a moderna construção do nacionalismo nos PALOP; Com excepção dos países arquipelágicos (Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe), há a guerra como factor dissociativo e associativo.

Como diria a historiadora angolana Maria da Conceição Neto, pelo menos os angolanos e os moçambicanos, enquanto africanos, antes de eventualmente se considerarem “lusófonos”, são, maioritariamente e em primeira instância, “bantuófonos”.

Maria Manuel Baptista, numa comunicação apresentada no III Seminário Internacional “Lusografias”, promovido pelo Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Évora, que decorreu de 8 a 11 de Novembro de 2000, logo no início da sua intervenção, referiu o seguinte: “A presente comunicação parte da ideia de que o conceito de Lusofonia é um bom conceito para abandonar, pois é um termo que imagina designar e conter em si um espaço linguístico-cultural que teria desde logo como centro os ‘lusos’ ou os ‘lusíadas’, apesar de o discurso oficial, de intelectuais e políticos dos mais diversos quadrantes e formações, ser incapaz de assumir claramente, e sem hipocrisia, a não inocência de um tal conceito”. Maria Manuel Baptista sustenta esta afirmação com uma citação do professor e filósofo português Eduardo Lourenço, que, em 1999, no seu livro – «Cultura e Lusofonia ou os Três Anéis – A Nau de Ícaro, seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia», afirmou perentoriamente: “Não sejamos hipócritas, nem sobretudo voluntariamente cegos: o sonho de uma Comunidade de Povos de Língua Portuguesa, bem ou mal sonhado, é por natureza – que é sobretudo história e mitologia – um sonho de raiz, de estrutura, de intenção e amplitude lusíada”. E acrescenta que a questão da “Lusofonia” tal como a Francofonia, só pode ser adequadamente esclarecida num contexto mais vasto “que é o da nossa actual cultura mundializada, a braços com a, porventura, mais profunda crise que o pensamento ocidental já viveu, situação cultural e espiritual que tem sido comumente designada por pós-modernismo, pós-humanismo, pós-cristianismo ou pós-colonialismo”.
De entre os intelectuais portugueses que têm procurado um sentido, simultaneamente retrospectivo e prospectivo, para a “lusofonia”, destaca-se, de facto, Eduardo Lourenço, “um europeísta convicto, ora crítico e desiludido, ora utópico e entusiasta”, mas, face à “lusofonia” são claras e reiteradamente assumidas as suas posições, nos diversos textos que tem publicado sobre esta matéria. Lamentavelmente, pouco divulgados.

Por agora, fico a imaginar um “mucubal” no seu percurso comunitário de transumância ou uma “mumuíla” nas ruas da serra da Chela a vender óleo de “mumpeke” e “ngundi” para vitaminar o cabelo e alguém, por imperativos doutrinários, dizer-lhes que são “lusófonos” (?!).


“A Venezuela é um país com muito potencial no que se refere ao ensino da Língua Portuguesa”
Rainer Sousa, coordenador na Venezuela

A promoção e difusão da Língua e Cultura portuguesas é o grande objetivo da Coordenação do EPE (Ensino Português no Estrangeiro) na Venezuela. Um país onde a maioria dos estudantes de Português ainda são luso-descendentes, mas onde se tem notado “cada vez mais” o interesse em estudar esta língua por parte de venezuelanos sem nenhum vínculo com a comunidade portuguesa. Para que este interesse permaneça e cresça, é necessário, entre outras metas, formar mais professores, como sublinha Rainer Sousa.

Na Venezuela, o Português é dinamizado no regime de ‘ensino paralelo’, oferecido de forma extracurricular. “Ainda estamos a dar os primeiros passos na introdução do Português de maneira oficial nas escolas venezuelanas”, afirma Rainer Sousa. Há 22 instituições que oferecem cursos de Português, duas das quais começaram este ano organizá-los.


E se os alunos ainda são, maioritariamente, luso-descendentes, a Língua Portuguesa tem, a cada ano que passa, despertado o interesse de venenzuelanos sem nenhum vínculo familiar a Portugal.

 

Conceitos Lingüísticos, Colonização Lingüística


Os efeitos ideológicos de um processo colonizador materializam-se em consonância com um processo de colonização lingüística, que supõe a imposição de idéias lingüísticas vigentes na metrópole e um ideário colonizador enlaçando língua e nação em um projeto único.
A colonização lingüística é da ordem de um acontecimento, produz modificações em sistemas lingüísticos que vinham se constituindo em separado e, ainda, provoca reorganizações no funcionamento lingüístico das línguas bem como rupturas em processos semânticos estabilizados. Colonização lingüística resulta de um processo histórico de encontro entre pelo menos dois imaginários lingüísticos constituivos de povos culturamente distintos − línguas com memórias, histórias e políticas de sentidos desiguais −, em condições de produção tais que uma dessas línguas − chamada de língua colonizadora − visa impor-se sobre a(s) outra(s), colonizada(s).


Os efeitos decorrentes desse processo de colonização lingüística, porém, não são sempre os mesmos nem não são previsíveis; basta que se observem comparativamente as trajetórias das diferentes línguas indígenas, das línguas africanas e de línguas colonizadoras como o português, o inglês, o francês e o espanhol nas Américas.


Se, de um lado, há um encontro da língua de colonização com outras (européias, indígenas ou africanas), de outro, há um lento ‘desencontro’ dessa língua colonizadora com ela mesma. Assim, a colonização lingüística também pode ser apreendida como um acontecimento lingüístico bastante específico: um (des)encontro lingüístico no qual os sentidos construídos são singularizados em situações enunciativas singulares, situações histórica e paulatinamente engendradas que vão dando lugar ao surgimento de uma língua e de um sujeito singulares.


Em termos sintéticos, a colonização lingüística do Brasil pode ser apresentada conforme os pontos enumerados abaixo:


1) Os colonizadores e administradores falam e escrevem sobre as línguas desde os primeiros momentos do contato. Esse conjunto de dizeres sobre as outras línguas vai instituindo um lugar para elas. É um lugar organizado a partir de um domínio de saber lingüístico, alimentado por um imaginário já pré-constituído, ao mesmo tempo em que passa a fomentar o saber sobre as línguas e a circulação de outros sentidos não previstos. Talvez aqui se encontre um dos aspectos de maior exclusão presente na colonização lingüística, pois frente à construção desses dizeres não há um “direito lingüístico de resposta”: os índios não podem nem contestar a interpretação portuguesa, uma vez que não sabem o que está sendo dito sobre eles, nem têm como deixar na memória sua interpretação sobre esse desconhecido português, já que sua língua não tem escrita.

2) Faz parte da colonização lingüística um estudo das línguas desconhecidas como forma de dar sustentação às idéias lingüísticas vigentes. No caso português, a colonização lingüística no século XVI sustenta ideologicamente o próprio ato da expansão marítima e religiosa. É, por exemplo, de Fernão de Oliveira um dos enunciados que fundam e fundem as políticas expansionistas e lingüístico-religiosas: “...melhor é que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma.” (Oliveira,1975). Ou ainda, como afirma João de Barros seguindo essa direção: “... per esta nossa arte aprenderem a nossa linguagem com que possam ser doutrinados em os preceitos da nossa fé, que nella vam escritos.” (Barros,1971). Esses enunciados, retomados parafrasticamente ao longo do processo colonizador pela legislação colonial, reaparecem no século XVIII no Diretório dos Índios promulgado por Pombal como forma de reafirmação dos sentidos já estabelecidos e também como forma de oficializar em definitivo a língua como uma das instituições nacionais portuguesas na colônia: “Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações (...) introduzir logo nos povos conquistados seu próprio idioma...”


3) Tão importante quanto a imposição da língua de colonização é o aprendizado das línguas desconhecidas. Na colonização brasileira, esse aprendizado ou se realizou oralmente ou em função da gramatização, como decorrência das formas como ia se dando o contato: inicialmente, os línguas, e depois os colonos e os bandeirantes, por exemplo, aprendiam oralmente; já com os religiosos, tanto ocorre uma oralização quanto ocorre um ensino-aprendizado a partir das gramáticas e vocabulários que vão sendo escritos.
3.1) Para os colonos, o aprendizado da(s) língua(s) desconhecida(s) faz parte de um processo de conhecimento e de dominação da terra, como foi, por exemplo, a situação dos bandeirantes.
3.2) Para os religiosos, aprender a língua é uma forma de apreender a cosmologia indígena, e, assim, melhor traçar os caminhos mais adequados para uma conversão dos sentidos indígenas em católicos. A gramatização permite a construção de uma escrita, possibilitando a tradução e a conversão lingüístico-cultural de orações e outros rituais sagrados, como o batismo e as confissões. Esse processo permite, inclusive, o ensino da língua geral na metrópole, levando à produção de um efeito não previsto: uma outra língua passa a integrar materialmente o espaço da língua de colonização. Aprende-se uma língua imaginária, aprisionada nas redes de um modelo gramatical latino, e, ao mesmo tempo, apreende-se um imaginário sobre as línguas e sobre a colônia.


4) Nesse processo de aprendizado, há um estabelecimento de denominações para a flora, fauna e geografia da terra desconhecida, ou seja, organiza-se uma taxionomia semântica a partir da representação lingüística feita para os termos indígenas, misturados a termos provenientes do colonizador. As denominações, pensadas aqui em termos da construção discursiva dos referentes, vão tornando transparente a opacidade constitutiva do que é desconhecido, ou seja, engendram sítios de significância codificados em termos do domínio de pensamento do colonizador. (V. Orlandi,2002,p 29)

Nessa ótica, são elas que ficam nas gramáticas portuguesas como vestígio possível da presença do que havia sido excluído. Assim, sob o rótulo “provincialismos” ou “termos da língua geral do Brasil”, a língua colonizada tem seu lugar demarcado como uma diferença tolerável e já absorvida.


5) Paralelamente, apesar da forte presença sobretudo da língua geral, organiza-se a imposição da língua de colonização de forma a atingir, visando à difusão do português como língua e cultura da metrópole, um monolingüismo idealizado. Cidades, portos e fortes são locais de administração e legitimação dessa ambiência lingüístico-cultural predominantemente portuguesa. Nos portos e nos fortes, é na modalidade escrita da língua portuguesa que se faz o registro de entrada e saída de mercadorias, por mais que haja a pressão de diferentes línguas em circulação. Nas cidades, o latim e o português são ensinados em sua forma escrita e ocupam outros espaços institucionalizados da metrópole: escolas, tribunais e igrejas. Ensina-se o português fixado pela gramática, que assegurou a Portugal sua unidade e identidade como nação, de forma a garantir na colônia a reprodução desse imaginário. Embora nos termos dessa descrição gramatical voltada para o ensino e a escrita, haja a fixação da imagem do português como língua una e homogênea, garantindo uma estabilidade lingüística necessária ao seu ensino longe da metrópole, sua historização na colônia não fica imune ao contato com as demais histórias e culturas.


6) Finalmente, a colonização lingüística supõe o estabelecimento de políticas lingüísticas explícitas como caminho para manter e impor a comunicação com base na língua de colonização. Delimitando os espaços e as funções de cada língua, a política lingüística dá visibilidade à já pressuposta hierarquização lingüística e, como decorrência dessa organização hierárquica entre as línguas e os sujeitos que as empregam, seleciona quem tem direito à voz e quem deve ser silenciado. A formulação e execução de uma dada política lingüística, no entanto, não impede totalmente a circulação e o amalgamento das línguas e dos sentidos.


Apesar da força engendrada pela colonização lingüística, não há ritual sem falhas, e a comunicação supõe, também, a não comunicação, como nos lembra Michel Pêcheux. (Pêcheux,1988). Assim sendo, à revelia da colonização lingüística oficialmente imposta, pequenos lugares de esgarçamento nessa ideologia de dominação pela língua da metrópole vão sendo constituídos, permitindo, dessa forma, o surgimento de outros sítios de significação. O estudo desse processo permitiu delinear os seguintes lugares de resistência à colonização lingüística:


1) Ao longo da colonização, os índios vão construindo um lugar frente ao português, no qual eles redirecionam os processos de significação engendrados na língua de colonização. Assim, a partir de suas próprias línguas, a resistência se faz com base na simulação dos gestos que legitimam a língua portuguesa aos olhos e ouvidos do próprio colonizador. Reproduzem, por exemplo, a imagem da leitura de textos escritos, mesmo sem saber ler; fingem que aprendem a língua ou aprendem para discutir com comerciantes ou para refutar a legislação que se estabelece a seu respeito; aprendem a língua portuguesa e mentem valendo-se dessa mesma língua.


2) O aprendizado sistemático da língua geral, feito indistintamente por moradores da colônia, produz comunidades discursivas opacas ao entendimento da língua da metrópole.


3) Além disso, a gramatização do tupinambá pelos jesuítas, o “eleva” a um patamar de língua européia, pois seu funcionamento gramatizado permite a construção de uma escrita que venha dar forma jurídica às novas relações sociais e políticas presentes na colônia.


4) Para as denominações, vão sendo engendradas memórias, ou seja, vai sendo construída uma discursivização outra, ao mesmo tempo em que vai sendo produzido um esquecimento das relações entre palavras e coisas tal como se dava em Portugal;


5) Para além do ensino regular do português gramaticalizado ou da gramatização do tupi, os espaços de oralidade organizados em torno da língua geral e do próprio português se misturaram e se entranharam no modo como a língua portuguesa ficou na colônia. Dito de outro modo, a formação histórica da colônia é marcadamente oralizada e, inversamente, nessa oralização estão materializadas as histórias dos sentidos das duas línguas e a memória do modo como ambas se modificaram em função da própria colonização lingüística.


6) A política lingüística planejada e executada não dá garantias para uma estabilização dos sentidos postos em circulação e que vão se constituindo em função do contato e à revelia das instituições gerenciadoras do que se pode e se deve dizer.


Da colonização à institucionalização lingüística


Para a língua portuguesa se tornar língua de colonização, foi necessário que ela fosse instituída, tivesse um caráter institucional, conforme foi dito. Ela foi fundada como instituição, legitimando Portugal como nação. Em termos históricos, aos portugueses é natural, óbvio, ter a língua portuguesa como língua nacional: português tanto designa o povo quanto a nação.


Na colônia, no entanto, não se reproduziu exatamente a naturalização do que havia na metrópole, embora a colonização lingüística estivesse voltada exatamente para tal reprodução. Operou-se uma disjunção histórica na própria palavra português e, paralelamente, constituiu-se uma nação com outro lugar enunciativo e com um outro nome: brasileiro.


A língua portuguesa, instituição da nação portuguesa, foi institucionalizada na colônia, ou seja, foi necessário um ato político-jurídico − o já mencionado Diretório dos índios − para institucionalizar, oficializar de modo impositivo que era essa, e apenas essa, a língua que devia ser falada, ensinada e escrita, exatamente nos moldes da gramática portuguesa vigente na Corte.


Institucionaliza-se, assim, A língua portuguesa com SUA memória de filiação ao latim. O Diretório busca colocar em silêncio a língua geral e seus falantes, caracterizando a referida língua como uma “invenção diabólica”. Não se fala em um português-brasileiro. Ele ou não existe aos olhos da metrópole, ou, se existe, precisa ser corrigido, melhorado, reformatado de acordo com os moldes gramaticais portugueses. Aos olhos da metrópole precisa ser a continuidade da imaginária homogeneidade que confere o caráter nacional a Portugal. Mas os processos históricos, como se sabe, são continuidade e mudança, sempre.


Fonte: labeurb.unicamp.br

 

LUSOFONIAS


Era um mundo novo / Um sonho de poetas / Ir até ao fim / Cantar novas vitórias /E erguer, orgulhosos, bandeiras / Viver aventuras guerreiras / Foram mil epopeias / Vidas tão cheias /Foram oceanos de amor / Já fui ao Brasil / Praia e Bissau / Angola, Moçambique / Goa e Macau / Ai, fui até Timor/ Já fui um conquistador / Era todo um povo / Guiado pelos céus /Espalhou-se pelo mundo /Seguindo os seus heróis / E levaram a luz da tortura/ Semearam laços de ternura Foram dias e dias e meses e anos no mar / Percorrendo uma estrada de estrelas a conquistar
Da Vinci, na Eurovisão, 1989

"A África é algo mais do que uma terra a ser explorada; a África é para nós uma justificação moral e uma razão de ser como potência. Sem ela seríamos uma pequena nação; com ela somos um grande Estado.".
Marcelo Caetano, 1935

"No meio das convulsões presentes, nós apresentamo-nos como uma comunidade de povos, cimentada por séculos de vida pacífica e compreensão cristã, irmandade de povos que, sejam quais forem as suas diferenciações, se auxiliam, se cultivam e se elevam, orgulhosos do mesmo nome e qualidade de portugueses."

Salazar, 1933

“É uma ponte que se constrói, uma ponte que une as margens distintas das identidades culturais de cada um dos países de língua oficial portuguesa, uma ponte que pretendemos inscrever no nosso imaginário colectivo, num encontro cultural único, que amplie o nosso olhar sobre os outros e sobre nós próprios, fortalecendo indelevelmente os laços que nos unem e a nossa forma de estar no mundo.”
Jorge Couto, ex-presidente do Instituto Camões, a propósito de uma publicação durante a Expo 98.

A lusofonia poderá ser o conjunto de identidades culturais existentes em países, regiões, estados ou cidades em que as populações falam predominantemente língua portuguesa: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Macau, Timor-Leste e diversas pessoas e comunidades em todo o mundo. Haverá entre estes países lusófonos relações privilegiadas - na cooperação política e económica (situação prodigiosa de unir as duas margens do Atlântico), na educação e nas artes – grandes criadores que manejam a língua de forma criativa, inventam outras pátrias de Camões, contribuindo com a sua obra para ampliar a interculturalidade lusófona: Pepetela, José Craveirinha, Saramago, Jorge Amado, Luandino Vieira e tantos outros.
Essa delimitação imaginária será geográfica, de poder, de identidade, de descrição comum, mas é, antes de mais, um projecto, uma construção artificial, como são todas as fronteiras, nações e conjuntos de nações3.

Neste espaço, que se convencionou chamar de ‘lusófono’, partilha-se a mesma língua nas suas várias recriações. É certo e fantástico: viaja-se numa floresta tropical, no rio do Amazonas, nas montanhas de Díli, numa estrada da Huíla e podemos conversar em português, vamos a um café em Bissau ou uma esplanada em Cabo Verde e gozamos o momento de ler o jornal na nossa língua (ainda que nem sempre em português nos entendemos, pois para muitos a língua oficial é uma língua estrangeira que cumpre apenas funções administrativas).

Que identidades culturais partilham estes países para além da especificidade da língua (que já é muito) e do destino de emigração ser a antiga metrópole? Porque têm de ser tomados em conjunto, como um pacote de países, estas diferentes culturas a quem aconteceu terem sido esquartejadas em países colonizados pelo mesmo poder central? E de que se trata quando se pretende fortalecer a “nossa forma de estar no mundo”? Que olhar é esse nosso olhar? Quem é este nós? À partida um ‘nós’ é feito de coisas muito diversas e, se referido ao português, devia ser o oposto de um motivo de orgulho.

A lusofonia depende da “narração de uma certa história da colonização portuguesa, que justifica um certo presente” (como referiu António Tomás, explicando como era necessário contar histórias alternativas, por exemplo a de Amílcar Cabral4), pois se o presente se faz da reaplicação de narrativas fundadoras, quase todas aleatórias e/ou construídas, e de interpretações da história, se as histórias forem outras o presente implicitamente o será. Mas até agora o que existe são estes discursos ancestrais que passaram, com uma nova maquiagem, a ser ‘senso-comum’. A lusofonia, apesar de actualizar o passado colonial e protelar o imaginário imperial, não é incomodativa porque se revestiu de um discurso arejado, menos chato do que a celebração dos descobrimentos, ainda que dela se alimente.5 E a retórica da interculturalidade - como a Expo 98, o Ano Europeu do Diálogo Intercultural em 2008 e outras efemérides - dá-nos a sensação de estarmos num espaço que se pretende politicamente correcto e preocupado com as questões fundamentais aliás de como viver com o Outro. Porém, tal discurso contém os seus perigos quando “manifesta um desejo utópico de retratar a história e as relações entre diferentes comunidades ao nível global, como sendo uma relação sem poder, sem conflito.” (Vale de Almeida, 1998: 237) Ou seja, tende a elidir o processo marcado pelo conflito e pelas relações de poder, retrabalha o passado de forma celebratória e não problematizante.

Precisamos pois de perceber melhor o que está por detrás de todos estes discursos - produzidos de acordo com as políticas e ideologias mais viáveis - no sentido de “evitar a recepção acrítica de tendências particulares, evitando assim que estas sejam apressadamente generalizadas ou universalizadas” (Sanches, 2007: 10), e no interesse de pensar mais pelas dúvidas do que pelas certezas vinculadas na narrativa da História.
Refiro-me à lusofonia (discurso oficial e práticas) no enfoque da relação Portugal / países africanos de língua portuguesa. O caso do Brasil (na sua dimensão continental) ou terras asiáticas são fenómenos diferentes embora enquadrados na mesma lógica.

A designação de PALOP, uma vez mais, é também um abstracto conjunto resultante da cartografia imperial. Sabemos bem como estes países visados contêm no seu seio inúmeras particularidades, já internamente vítimas da hegemonia contra as suas outras nações dentro do conceito de Estado-Nação. E note-se que, neles, a língua portuguesa foi uma ferramenta que “devia servir para produzir novas nações (e não apenas novos países) criando identidades unificadas contra etnicidades precedentes. A língua portuguesa não era uma língua nacional mas uma língua de unidade nacional.

“laços” lusófonos

Do outro lado da moeda, alguns comportamento de alguns portugueses que vivem em países africanos são, também eles, similares aos dos de outros tempos: vivem igualmente a sua cultura de gueto, no eixo casa-jipe-empresa, vão a praias vigiadas, frequentam meios privilegiados, tratam por “locais” os africanos e perpetuam na sua cor de pele as conotações económicas. Alguns portugueses vivem por ‘lá’ mas em constante desconfiança, cheios de preconceitos sobre o ‘cenário’ à volta, numa pose neo-colonial mas mais tímida e discreta, sem lhes ser permitido fazer certas afirmações no espaço que já não é o “seu”, mas do qual ainda se julgam donos, reivindicando (compreensivelmente) uma herança familiar e histórica que ainda pesa nas suas apreciações e fruição do vasto espaço africano. Às vezes, também pesa na consciência, e então tornam-se condescendentes com tudo, culpando o colonialismo e as relações do passado de todos os males actuais, à la Kadafi. Outras vezes, com um riso cínico da incapacidade dos africanos se auto-organizarem. Porém, em nada África lhes é indiferente: o fascínio da pureza, do sangue, a disfuncionalidade, a doença, a infantilidade, o desgoverno e o caos são coisas que atraem e fazem proliferar ong’s com legiões de jovens ocidentais numa pretensão ‘altruísta’ nas mesmas bases da missão evangelizadora do tempo colonial.

Entre as várias atitudes nas formações discursivas em relação a África, como assinalou Ana Mafalda Leite (2003: 23), contam-se a paternal (com resquícios coloniais, encarando o outro com distância e tolerância), a deslumbrada, a adesão incondicional (quase acrítica), e a solidária, que faz a ponte com o passado (somos todos inocentes, partilhámos a história passada), de alguma forma ligada à lusófona, no que tem de “versão democrática de como o encontro dos portugueses com os outros povos foi diferente dos outros, e de como esses povos têm saudades do nosso convívio” (Ana Barradas, 1998: 232).

Mais uma vez, essa visão de excepção subjacente ao colonialismo português está presente nas retóricas bem intencionadas do encontro ou partilha de culturas, tendo de ser questionada na sua veracidade e na sua origem para que o “cinismo de Estado” não disfarce as realidades quotidiana promoção de lusofonia.

Apesar do discurso aparentemente empenhado da lusofonia, na realidade não existe verdadeiramente uma consciência lusófona, não há lóbi lusófono na ONU ou na OMC (pelo menos se compararmos com a francofonia), nem tem assim tanta coesão, nem no plano económico nem político. Nem em termos de identidade: quase nenhum africano ou brasileiro se afirma enquanto ‘lusófono’ (só ouço portugueses falarem disso).

O que une os “lusófonos” afinal hoje em dia, que ‘potencial’ é este para o qual devemos encontrar uma estratégia de consolidação? Será então a partilha de cultura: conhecimento das histórias e literaturas uns dos outros, gostos culinários, musicais, o futebol?

Se assim for, a dúvida persiste no que toca à estratégia dos promotores da lusofonia, uma vez que o desinteresse é a tónica dominante nas várias áreas de expressão. Como questionava Kalaf numa crónica do Público: “Será que nos interessamos realmente pela lusofonia? Ou este é um conceito que serve tão-só a maquinação mediática? O Brasil, aparentemente, pouco se importa com a actualização deste luso-qualquer-coisa e Angola está a seguir o mesmo caminho.”

Este desinteresse provirá talvez do facto das práticas também remontarem ao passado. Os agentes de promoção da lusofonia ainda funcionam como centro cultural na ‘metrópole’ que subsidia os vários representantes no terreno sem qualquer noção das realidades desses países, sem estratégia conjunta de programação, etc. O espaço lusófono acaba por ser a tal “bolha onde tudo é possível e tudo se consome”, retomando a ideia de Lívia Apa, “um mundo criado pelo ‘laço’ da língua portuguesa, dentro do qual os escritores transitam, se movem, trocam visitas, falam, escrevem, são lidos, mas fora do qual eles próprios não conseguem encontrar o seu lugar, como se fossem até incapazes de ter acesso ao que acontece fora da lusofonia.

Por exemplo, os escritores africanos leem pouco os outros africanos não lusófonos.”

O fechamento para outros espaços como reflexão cria essa bolha de protecção nas rédeas de um circuito fechado e alienante. O facto da produção literária passar pelo mercado português para ser legitimada (o cânone produzido de forma exógena), e nessa obrigação ter como porta de acesso o ‘exótico’, a única permitida pois o mercado sabe bem fazer rentabilizar a ‘diferença’, por vezes condiciona a própria forma de escrever (como se se escrevesse para português ler), praticando uma tradução cultural de si-mesmos. Os escritores africanos pouco lidos nos seus países de origem são-no mais na Europa, onde há mais leitores, e também aqui pode pôr-se a hipótese, como avançou Inocência Mata, de uma reedição da política do assimilacionismo cultural e de continuidade do império na cultura. (Mata, 2007: 288)

A língua portuguesa era o suporte do Império e hoje é o suporte da lusofonia no que concede de possibilidade de universalismo. Para reforçar esta partilha há que promove-la, o que não tem mal nenhum se não se partisse do princípio de que cabe aos portugueses o controlo da língua portuguesa. Desta forma, escreve Alfredo Margarido (2007), “a língua deixaria de ser um instrumento capaz de ser utilizado por qualquer grupo ou mesmo indivíduo, pois seria não só a criação mas sobretudo propriedade dos portugueses. Se partirmos do princípio que a língua pertence àqueles que a falam, regista-se uma profunda autonomia dos locutores de português. Se esperamos que a língua continue a expandir-se, devemos em contrapartida refrear o instinto de dominação que continua a marcar a sociedade portuguesa.” Veremos agora em relação ao novo acordo ortográfico o que vai mudar neste capítulo, bem presente nas vozes mais conservadoras deste debate.

É como se a língua, o património dos falantes de português, fosse o último território que ficou por descolonizar, como sugeriu o escritor timorense Luís Cardoso no colóquio acima referido.

Mas só que quem está a dar cartas desta vez, num processo autofágico de pegar na norma e subvertê-la, ao contrário do colonialismo linguístico pretendido, são outros: “reinventamos o português, os tugas a aprenderem connosco, somos colonos desta vez” rapa o angolano Kheita Mayanda no tema “É dreda ser angolano”. E é equacionando estas variantes todas do português, com muitos mais falantes e criatividade, sem sobreposição da norma do suposto ‘centro’ da língua, que a língua portuguesa se enriquece.

A música poderia ser a excepção, onde o discurso do “espaço lusófono” faria algum sentido uma vez que, desde o séc. XV, tem sido um elemento de fortes trocas culturais percebendo-se a saudável contaminação dos ritmos e conhecimento das origens da música nos vários países de língua portuguesa. Exemplos: o fado que é da família do lundum e da morna; a curiosidade dos cantautores de intervenção portugueses pelas sonoridades da música africana e brasileira; a partir dos anos 90, a alavanca de projectos como Rap Mania ou Kussondolola (que fez a ponte com África na cultura jovem) e, hoje em dia, inúmeras bandas de fusão. A música que circula na cultura urbana recupera o semba, mornas, e apresenta imensos pontos de contacto entre as várias culturas.

Apesar da lusofonia musical ser uma realidade constatada, mais uma vez o próprio projecto lusófono se desintegra na prática. As produtoras portuguesas andam a dormir. No filme Lusofonia, Sons da (R)evolução os músicos e agentes musicais lamentam a falta de investimento nacional e terem de recorrer a editoras não portuguesas (sobretudo francesas e holandesas, no caso das cantoras Lura, Cesária Évora, Sara Tavares, Mariza) com melhores condições, da gravação à promoção passando pelos prémios. As editoras portuguesas estão desatentas à fonte inesgotável de boa música da noite afro-lisboeta, não acreditam e não cuidam do seu ‘património linguístico’ - a música em língua portuguesa ou crioulo em muitos casos - como mercado de confluência de culturas. Por complexos, falta de visão? De vez em quando descobrem incríveis fenómenos como o kuduro progressivo, caso dos Buraka Som Sistema. Mas mesmo assim, o kuduro, sobretudo o original e dos guetos, é subaproveitado no seu potencial: “se fosse de Berlim, Nova Iorque ou Londres o kuduro era uma música do mundo” diz, no mesmo filme, o crítico Vítor Belanciano.

Nas artes plásticas parece que a maioria das abordagens vão de encontro a um espírito que cristalizou uma ideia de arte africana, tradicional e ao gosto dos africanistas. Ou para satisfazer um mercado ávido de naif e novos primitivismos, bastante condescendente e que sobrevaloriza os contextos dos artistas em relação à sua arte. De vez em quando há iniciativas que reflectem uma visão contemporânea e introduzem uma série de questões ligadas às teorias pós-coloniais, mas colocam sempre o enfoque na tal devolução da imagem de um centro: os vestígios dos portugueses em África, ou como os africanos vêem os portugueses cá, ou os descendentes de colonizados descobrem as suas origens, etc. Outros eventos passam à margem da aglomeração lusófona (e do próprio meio artístico português).

Estes exemplos de má promoção da lusofonia acabam por convergir na ideia de que não se tem investido a sério neste espaço, cuja sustentação não é desinteressada. Os laços criados entre as culturas destes países existem naturalmente nas histórias de vida, a maioria delas empurradas pela realidade anterior de criação de colónias, que leva agora a que se emigre para o sítio de onde esses que as povoaram partiram (e outros, no fluxo contrário, partem à procura do el dourado do investimento em África), ou por questões de guerra, economias desmembradas, desemprego, estudo, desamor, ou mil razões que fazem as pessoas circular para realidades nem sempre acolhedoras, mas que proporcionam a recriação da sua identidade.
A herança da história trágico-marítima foi transformada em discursos sobre ‘pontes’ e laços culturais, depois de uma vez se terem criado pontes aéreas para fugir da insustentabilidade de uma situação ideológica que eram as colónias. E toda essa partilha que se pretende efectiva actualmente, é também ela ideologicamente questionável, com interesses e práticas que insistem nos mesmos termos e dados do jogo.

É preciso auto-reflexividade para estancar a reprodução dos mitos do antigamente.

Questionar as bases deste modelo e defesa da lusofonia poderá ser um princípio para uma mudança de paradigma: interessa lidar com subjectividades e particularidades, contextualizando de onde vêm estas relações, e não com abstractos conjuntos de países que, além da língua e de episódios históricos, não se revêem necessariamente nesse bonito retrato de família que Portugal quer passar e do qual faz uso sempre que lhe convém.

Publicado na revista Jogos Sem Fronteiras, edições Antipáticas

 



A CPLP na agenda e no discurso brasileiros

Na última semana de setembro de 2008 foi firmado pelo Brasil o acordo ortográfico, que uniformiza o uso da linguagem entre os países de língua portuguesa. Quase ao mesmo tempo, poucos dias depois, a maior companhia brasileira, a Petrobrás, perdeu a concorrência para a Marathon Oil na exploração de petróleo em Angola. Em meados de outubro, em viagem a Moçambique, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva queixou-se de que um projeto para construção de uma fábrica de remédios contra Aids/Sida, prometida desde 2003, ainda não estava em execução.

No primeiro caso, tratava-se de um projeto de antiga origem que encontrou dificuldades dos dois lados do oceano Atlântico, embora já tivesse sido acordado desde dezembro de 1990. Certamente, como diz o embaixador de Portugal no Brasil, Francisco Seixas da Costa, "este acordo pode ser considerado estratégico, já que uma escrita comum vai permitir que o português seja uma língua internacionalmente reconhecida"13. No segundo, a derrota deveu-se, provavelmente, à maior eficiência das políticas implementadas pelo governo chinês em continente africano, embora com presença naquela parte do mundo há poucos anos, muito menos, portanto, do que a presença brasileira, não apenas nos países de língua portuguesa, mas também em outros Estados, como Nigéria, Senegal, etc. Já no terceiro caso, a culpa pelo fracasso da iniciativa era da própria inoperância das instâncias brasileiras que, cinco anos depois do que foi prometido, não tinha os recursos liberados pelo Congresso para a construção de fábrica de remédios. (NOSSA, 2008: B4)

Esses três fatos são, provavelmente, as variáveis mais importantes de relacionamento entre todos os parceiros que fazem parte da CPLP. Um se refere aos aspectos culturais envolvidos, outro diz respeito aos fortes interesses econômicos em jogo, e por último as dificuldades existentes para implementar acordos, ainda que prometidos tempos atrás.

Considerar uma vertente importante, como a identificação cultural e lingüística que vem desde muitas gerações, não significa que isto se traduza em vantagens econômicas e financeiras, embora estejam presentes grandes empresas brasileiras, do porte da Petrobrás, ou de setores de construção civil para a abertura de estradas, feitura de barragens, etc.

O governo brasileiro, com certeza, sempre teve consciência de problemas dessa natureza, inclusive com seus vizinhos mais próximos do próprio continente. Evidentemente, como costuma acontecer, podem ter ocorrido erros de cálculos e interpretações, más avaliações tanto conjunturais, quanto em termos das intenções reais de seus parceiros.

Contudo, deve-se ponderar, porém, que nem sempre o relacionamento foi pautado apenas visando lucros imediatos. Pode-se dizer que, em termos gerais, as relações externas brasileiras, da mesma forma como se comporta a maior parte dos países do mundo, contemplam as duas facetas: uma em que se espera o retorno, se não imediato, pelo menos depois de um certo tempo, das atitudes tomadas no intercâmbio bilateral ou no envolvimento global nas instâncias regionais e de escopo mundial; a outra, em que pouco ou nada se pode esperar dos parceiros e das instituições, mas que nem por isso devem ser negligenciadas, sobretudo quando outras variáveis estiverem presentes, como o histórico dos países envolvidos, os vínculos culturais, os laços afetivos, etc.

Nesse sentido, a importância concedida pelo Brasil a organismos como a CPLP tem sua razão de ser. Por isso, mereceu atenção especial desde a década passada, quando se constituiu a própria entidade. Na realidade, a proximidade brasileira com todos os países de língua portuguesa com freqüência recebeu atenção, ainda que nem sempre estivesse na linha de frente da pauta do Itamaraty. No entanto, pode-se afirmar que a importância concedida pelo Brasil à CPLP é proporcional a que a mesma desfruta no cenário internacional. Não é apenas em relação a CPLP como instituição, mas com todos os países que a compõem, a não ser em momentos específicos.

Nas últimas décadas, pode-se lembrar o vínculo mais estreito, por exemplo, do Brasil com Portugal no governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira e, em outras ocasiões, com Jânio da Silva Quadros ou Humberto de Alencar Castelo Branco, quando se aventou a possibilidade de formação de uma comunidade luso-afro-brasileira. No governo de Ernesto Geisel, o reconhecimento de Angola e Moçambique em 1975 foi sinal de aproximação com esses países, sob a ótica do pragmatismo responsável. Outros momentos parecidos aconteceram com José Sarney e Itamar Franco antes de ser firmada a carta de criação da CPLP sob o mandato de Fernando Henrique Cardoso.

Não se deve, porém, presumir que a atenção concedida a esses países se assemelha ao papel exercido por outros como Argentina, Estados Unidos, Japão, Reino Unido, Alemanha ou França além de nações emergentes como a China, Rússia, Índia e África do Sul. Além da retórica de países irmãos unidos pela história, os indicadores entre Brasil e CPLP estão aquém do que se poderia considerar relações privilegiadas. Dados apresentados em trabalho recente, indicam claramente as preferências brasileiras para três grandes países: África do Sul, Angola e Nigéria. É o que se poderia chamar igualmente de parcerias seletivas no continente africano. (RIBEIRO, 2007: 172-195).

Não se pode afirmar, contudo, que a CPLP não tem importância para a política externa brasileira. Desde sua criação, a CPLP pode ser entendida como um grupo que pode, em momentos variados, dar substancial apoio às pretensões brasileiras em nível mais geral. Mas não se pode, também, negligenciar o papel que o país procura exercer junto a essa comunidade, como aquele que tem maior projeção e capacidade internacionais.

Ou seja, a presença do Brasil na CPLP pode ser vista sob duas perspectivas: de um lado, no uso da mesma para projetar os interesses brasileiros no exterior, ou seja, uma instrumentalização feita pela política externa brasileira, visando maximizar o uso de todos os recursos possíveis existentes, inclusive para ocupar espaços maiores do que outros países junto às nações que fazem parte da comunidade; por outro lado, pode-se, igualmente inferir que, apesar do "pragmatismo" de sua política externa, o Brasil também pensa em termos de atuação conjunta da CPLP para atender interesses globais que não seriam possíveis de se obter individualmente.

Quando se formou a entidade, o governo brasileiro manifestava claramente a simpatia pela iniciativa, e pela necessidade de se configurar um espaço maior para aqueles que tinham muitas identificações, e que não poderia, certamente, ser melhor sucedida se o Brasil dela não fizesse parte, já que é o maior deles, com relativo peso na arena internacional.14

Os esforços do ex-ministro da Cultura e ex-embaixador brasileiro em Portugal José Aparecido de Oliveira são amplamente reconhecidos como fator fundamental para que a empreitada fosse coroada de êxito pelo menos para sua criação. Em depoimento prestado anos depois, o embaixador assim se referiu à entidade:

Pudemos reunir em São Luís do Maranhão os Presidentes dos países lusófonos, criando o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, primeiro passo da CPLP e do aprofundamento das relações futuras. Quando o Presidente Itamar Franco chegou ao governo, conhecia as iniciativas anteriores e lhe fiz o relato da situação. Convidou-me, então, para representar o Brasil em Lisboa e encetar conversação em busca de uma aliança diplomática formal entre nós e os países de expressão portuguesa. Como era comum na diplomacia do passado, fui enviado a Lisboa com uma missão multilateral, e o fiz, como sempre agimos os mineiros: com lealdade, transparência e respeito absoluto aos nossos parceiros. Cumpri, com espírito de missão, o meu dever. Ao deixar Lisboa, no fim do honrado mandato do Presidente Itamar Franco, estavam firmes os pilares da CPLP.(OLIVEIRA, 2002:26)

Mas, mostrava, igualmente, nessa mesma oportunidade, ressentimentos sobre a forma como o Itamaraty se comportava em relação aos países de língua portuguesa, especificamente no caso dos graves problemas enfrentados por Timor.

Estamos dando, nestes dias, uma prova concreta dos nossos ideais, com a nossa presença em Timor Leste. Devo recordar a firmeza do Presidente Itamar Franco, ao chegar a Lisboa, como embaixador, na defesa da independência daquele povo irmão. Suas palavras, asseguradas pela autonomia moral na representação dos interesses permanentes e das razões morais de nosso país, não foram recebidas com o devido respeito por setores petulantes da burocracia do Itamaraty. Não fosse essa sua intervenção corajosa e transparente e não teríamos, como tivemos, um brasileiro com o mandato das Nações Unidas para conduzir os atos da transição em Timor. (OLIVEIRA, 2002: 27)

Esse depoimento comprova, sem deixar margens a dúvidas, o envolvimento do embaixador Oliveira na criação da CPLP, mas deve ser visto sob uma ajustada lente. Em primeiro lugar como ressalta, a lealdade entre mineiros. Tanto ele como o presidente Itamar Franco são do estado de Minas Gerais e antigos militantes do mesmo partido, daí os vínculos estreitos existentes entre ambos, um dos motivos pelos quais foi convidado a ocupar a Embaixada em Lisboa e ter sido ministro da Cultura. Em segundo lugar, o fato também de o próprio presidente Itamar Franco ser nomeado depois para a mesma Embaixada, assim que deixou o Palácio do Planalto. Como ambos eram externos ao corpo diplomático, e no caso de outros parecidos, o Itamaraty nunca viu com bons olhos a nomeação de políticos, portanto, pessoas fora da instituição, para representar e falar em nome do país, ainda que em uma representação diplomática de menor porte, que não faz parte do circuito Elizabeth Arden, mas situada em território europeu e sempre alvo de demandas por parte dos embaixadores.

Pode-se entender, portanto, a pouca receptividade concedida pelo Itamaraty à atuação sobretudo do ex-presidente Itamar Franco, inclusive pelas suas peculiaridades e falta de vocação para desempenhar tal cargo. Por outro lado, pode, também, indicar que países menores, com pouca expressão, apesar das denúncias sobre direitos humanos, que colocavam o Timor na agenda diária internacional, não valiam, segundo a concepção do Ministério das Relações Exteriores, investimentos maiores, já que os retornos seriam extremamente reduzidos ou muito modestos, não só naqueles dias, mas ao longo do tempo. Claro que na retórica do discurso diplomático, sempre mereceram importância, e foram objetos de convênios culturais, científicos, educacionais, mas restringindo-se a poucas áreas, e com recursos limitados.

Independentemente de quais foram os inspiradores para a concretização da CPLP, como já discutimos anteriormente, além do mais isso pouco importa, o momento em que a entidade foi criada já trazia em seu cerne, as primeiras dificuldades. Embora tenha sido formalizada no governo de Fernando Henrique Cardoso em 17 de julho de 1996, depois de um longo processo de maturação que vinha já desde 1989, com a reunião em São Luís do Maranhão, a realidade é que as opções de inserção brasileira privilegiavam claramente outros vetores, que não os dos países secundários do sistema mundial. Isto era de todos conhecido, ainda que em termos de discurso expresso, por exemplo, pelo então chanceler Luiz Felipe Lampreia, a CPLP fosse considerada de extrema importância.

Na recepção oferecida pelo seu colega Jaime Gama, Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 4 de dezembro de 1996, em Lisboa, o chanceler brasileiro afirmava que:

"A CPLP haverá de ser um instrumento de cooperação, entendendo a concertação entre os países africanos de língua oficial portuguesa, o Brasil e Portugal, sem qualquer veleidade de hegemonia, mas com um espírito construtivo e a determinação de ocupar um espaço condizente com o peso específico da própria comunidade". (LAMPREIA, 1999: 134)

Pouco depois, no primeiro aniversário da entidade, repetia falta parecida, em 17 de julho de 1997, quando da abertura da Conferência Ministerial da CPLP em Salvador - Bahia.

"Ao realizar esta reunião aqui em Salvador, quisemos significar, sem ambigüidade, o quanto estamos empenhados em fazer da CPLP, de forma gradual, mas efetiva, uma realidade diplomática, uma força a favor de todos nós, que nos ajude a melhor projetar e defender, na base do consenso, os nossos interesses internacionais comuns". (LAMPREIA, 1999: 160)

Aqui pode-se adicionar um pequeno comentário. Se algo existe na arena mundial, é justamente a falta de coincidência de interesses comuns entre os países de língua portuguesa, além, certamente, dos esforços para viabilizar o idioma como oficial no âmbito da Organização das Nações Unidas. No mais, cada um sempre agiu à sua própria maneira e às custas de seus próprios esforços, ou dentro das organizações às quais pertencem no plano mais próximo, principalmente geográfico.

Por isso, possivelmente, pode-se entender os poucos esforços realizados tanto por Brasil, quanto por Portugal, os dois maiores da comunidade, e que foram assim entendidos por Mario Soares, anos depois. Aliás, é comum tanto nos discursos oficiais, quanto na própria produção acadêmica sobre a CPLP, a menção ao fato de os países membros pertencerem simultaneamente a várias outras organizações, o que tornaria possível ampliar a projeção dos interesses dessa comunidade, e que não necessariamente corresponde à verdade dos fatos.

Na abertura dos trabalhos da ONU, em setembro de 1996, o ex-chanceler chamava atenção para a existência (e os limites) da CPLP.

"Pela primeira vez, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe comparecem à Assembléia Geral das Nações Unidas organizados na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, voltada para a cooperação e a coordenação política. Em consulta e de forma concertada, os países membros da Comunidade esperam atuar com maior intensidade nas Nações Unidas, para melhor promover os seus interesses comuns e projetar a identidade lingüística, cultural e histórica que os une". (LAMPREIA, 1996: 611)

E mais não disse. Enquanto o espaço dedicado à CPLP ocupou oito linhas de seu discurso, em uma mera formalidade, o MERCOSUL, em contrapartida, preencheu o dobro, exatamente 16 linhas de sua fala.

No outro ano, em 1997, a única menção foi sobre o caso de Angola, quando disse que "O Brasil, no exercício da presidência da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, exorta a comunidade internacional e particularmente os países que integram o Conselho de Segurança a exercer uma vigilância atenta e severa sobre o processo de paz em Angola".(LAMPRÉIA, 1997: 630)

Enquanto ocupou o cargo de chanceler, Luiz Felipe Lampreia pronunciou-se mais três vezes, abrindo as sessões de trabalho das Nações Unidas. Em 1998 e 1999 referiu-se ainda aos casos de Angola e Timor, e, lateralmente, à CPLP. Já em sua última participação mencionou os dois casos, mas de formas diferentes: em Timor, para dizer que ali se desenhava um novo Estado, sob a liderança de Sérgio Vieira de Mello; sobre Angola, para denunciar a persistência do conflito, no que considerava uma "resistência inaceitável da Unita em obedecer às decisões e aos direitos internacionais". (LAMPREIA, 2000: 674-675) Neste último ano, a CPLP já havia desaparecido de seu discurso.

Nas duas últimas sessões da Assembléia Geral da ONU, sob o mandato de Fernando Henrique Cardoso, a CPLP perdeu definitivamente seu espaço, quando o próprio presidente lá compareceu e pronunciou o discurso de abertura em 2001, fazendo brevíssima menção ao Timor Leste, enquanto em 2002, o novo chanceler Celso Lafer apenas lembrou Angola brevemente.

Nas obras publicadas fazendo um balanço de suas gestões frente à Chancelaria, tanto Luiz Felipe Lampréia quanto Celso Lafer, além das menções feitas anteriormente, quando reproduzem os discursos, deixaram completamente de lado a existência e a importância da CPLP. (LAMPREIA, 1999; LAFER, 2002)

O presidente Fernando Henrique Cardoso, que ocupara a Chancelaria no governo de Itamar Franco no começo da década de 90, tinha uma percepção bastante precisa do contexto internacional. Assim, em pelo menos duas ocasiões dizia o que entendia pelo mundo em construção, o novo mundo globalizado, interdependente, mas também muito competitivo. Na primeira, em conferência pronunciada em Nova Delhi, em janeiro de 1996, portanto, no mesmo ano de criação da CPLP, enfatizava que o novo contexto "tem levado a uma acirrada competição entre países - em particular aqueles em desenvolvimento - por investimentos externos". (CARDOSO, 1997: 7) Um mês depois repetiu os mesmos argumentos, em nova palestra, desta vez na cidade do México, em 20 de fevereiro.

(CARDOSO, 1997: 20)

Certamente para o presidente Cardoso, os países em desenvolvimento capazes de oporem-se aos grandes eram os do porte da Índia, África do Sul, China. É o que seria chamado depois de parcerias seletivas, nas quais, automaticamente, estariam excluídos países com pouca expressão ou nenhuma capacidade de agregar competências para transformar o mundo, ou de atender as necessidades da política externa brasileira em termos de projeção de poder.

Sob esse prisma, as nações de língua portuguesa obviamente não se enquadravam dentro das prioridades brasileiras, e que pudessem auxiliar na inserção mais favorável do país no mundo. Nada de estranho que assim tivesse se comportado a política externa brasileira. Em uma conjuntura completamente distinta daquela que marcara o mundo durante quase quatro gerações, o governo entendeu que se devia fazer opções para enfrentar tal quadro.

Nesse novo mundo que emergia, e onde se percebia que poderia haver espaços para países como o Brasil e outros, vistos como potências emergentes, partiu-se do claro entendimento de que, nesse contexto multilateral e competitivo, apenas poucos seriam chamados a jogar papel de maior relevo. Por isso, ao Brasil pouco representava vínculos mais estreitos - com fortes investimentos - cujos resultados não pudessem auxiliar em sua trajetória ascendente. Comportamento semelhante já era observado no governo de Fernando Collor de Mello, nos inícios da década de 90, quando claras opções foram feitas privilegiando as grandes nações industrializadas, mormente no que tange ao governo da Casa Branca.

Se, com Itamar Franco, os países de língua portuguesa ocuparam espaço maior, não era, contudo, tendência a ser seguida nos últimos anos na virada do século. Por isso, os grandes países, as nações emergentes e o Mercosul - em função de suas particularidades e proximidade geográfica - receberam prioridade cada vez maior. Certamente isto tudo não se converteu nos resultados esperados, pelo menos com a ênfase que se poderia desejar. Mas, por outro lado, isto pode ser creditado a pelo menos dois fatores. O primeiro é que quando se opta por determinada linha de atuação internacional, o governo vê a formulação e implementação da política externa por seu lado, esperando que tudo corresponda às suas expectativas, embora saiba que não controla nem a vontade dos parceiros, nem a conjuntura internacional. Em segundo lugar, as bruscas mudanças, tanto internas quanto do cenário mundial, dificultam que suas expectativas sejam coroadas de êxito. Como são variáveis incontroláveis, a formulação da política externa pode ter boa margem de acerto se o cenário for durante certo tempo estável, não sofrendo, portanto, grandes oscilações.

Têm sido muitos os que discordam dos rumos da política externa nos últimos anos.15 Deve-se ponderar, entretanto, que decisões têm de ser tomadas em prazo relativamente curto, de acordo com a avaliação que o grupo que está no poder faz de seu projeto, do que pode esperar de seus parceiros e das conjunturas doméstica e internacional. Assim, quando a política externa está sendo pensada e executada, os erros de cálculo certamente vêm à tona e inibem os resultados esperados pelos formuladores nacionais.

Sob esse ponto de vista, também tem sido numerosos os equívocos tomados pelos responsáveis por essa área no país. Adicione-se a isso, as próprias divergências entre os decisores da política externa nas mais distintas esferas ou de proximidade com a Presidência da República. Essas diferenças de opinião têm sido observadas ao longo do tempo, quando uma instância próxima ao Presidente assume uma postura, depois reformulada pela chancelaria, por exemplo, que busca explicar melhor o que se deve entender pelo tema ou como o país defenderá suas posições nas arenas internacionais. Não tem sido poucas as vezes em que o próprio presidente Lula tem emitido opiniões com pouco ou nenhum respaldo sobre temas internacionais e realidades que desconhece. Outras vezes, o próprio Ministério das Relações Exteriores não tem correspondido às expectativas quanto às suas escolhas e formas de agir. Tudo isto, entretanto, depende, também, de qual seja o projeto que o grupo no poder vislumbra para si e para o país.

Destarte, as opções feitas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso são, em certa medida, bastante distintas das tomadas por seu sucessor, sobretudo no que diz respeito à importância do papel desempenhado pelos países de menor projeção em termos de poder global.

Da mesma forma em que as opções feitas por Fernando Henrique Cardoso passaram a ser intensamente criticadas após o mesmo deixar o poder, e mesmo no cargo, acusado de "entreguismo" e adesão indiscriminada ao modelo neoliberal, seu sucessor igualmente sofreu várias críticas. Entre essas, podem ser citados desde o perdão da dívida aos países latino-americanos e africanos, ao reconhecimento da China como economia de mercado não recebendo contrapartida que fizesse jus à sua generosidade. Outros fracassos podem ser mencionados, quando o país sofreu derrotas em oportunidades diversas, por exemplo, quando concorreu aos cargos de direção geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), lançando o nome do embaixador Luis Felipe Seixas Correia e para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com João Sayad, para ficarmos nos dois mais expressivos.

As visitas de Lula ao continente africano mostram em princípio que, além das boas relações com as grandes potências e com os países emergentes, foi possível dar atenção, não deixando de lado aqueles que pouco poderiam oferecer ao país, pelo menos em termos imediatos. A criação de 35 novas representações diplomáticas no governo Lula, sendo 15 em território africano, deixa bem claro a importância concedida aos PEDs (MARIN, D.C., 2009). Mesmo no Cone Sul, o Palácio do Planalto tem mantido o que no jargão diplomático se convencionou chamar de "paciência estratégica", fundamentalmente com a Casa Rosada.

A atenção concedida aos países africanos e da CPLP pode ser vista em algumas oportunidades nos últimos anos. Por ocasião do V Encontro da entidade, realizado em São Tomé e Príncipe, no final de julho de 2004, quando reuniu os representantes de cada nação, o governo brasileiro chegou mesmo a financiar o evento doando 500 mil dólares, além de infra-estrutura de comunicação e material de informática, que depois ficariam lá. Na VII Cimeira realizada em julho de 2008, em Lisboa, para divulgar a língua portuguesa, deu-se ênfase na dinamização do Instituto Internacional de Língua Portuguesa, com o governo brasileiro prometendo empenho e realçando a importância desse fato. Outros elementos podem, ainda, ser arrolados, como a iniciativa brasileira de propor acordos do Mercosul - tendo já obtido aval de seus parceiros - com a CPLP, excluindo Portugal, para favorecer intercâmbios econômicos e facilitar a importação de produtos dos membros da entidade.

Nesse quadro, a atenção concedida pelo Brasil à CPLP no governo de Lula atendideu de maneira satisfatória a histórica conduta da política externa brasileira que privilegia a cooperação em detrimento do conflito.

No atual desgoverno Bolsonaro, a incompetência e o pouco caso tem vindo a liquificar todo o esforço de Lula na consolidação de alianças e de interesses comuns.

Da CPLP à Comunidade Lusófona: o futuro da lusofonia


1. Introdução
1 - O encerramento serôdio de um Império que o Estado Novo teimou em manter, mesmo depois do disfuncionamento do Euromundo (sistema no qual esse Império se inseria e encontrava justificação), pôs termo a um relacionamento desigual entre os povos dos territórios por onde tinha passado o movimento expansionista português.


2 - No entanto, o fim desse Império não implicou o desaparecimento dos laços que a História se foi encarregando de criar entre os vários povos dominados e um povo que talvez deva ser definido como um colonizador colonizado, pois nem a descoberta da rota do Cabo nem o ouro do Brasil se revelaram suficientes para Portugal passar a integrar aquilo que é habitual designar como o centro.


3 - Por isso, numa fase em que Portugal já assumira a opção europeia e vários dos países africanos de língua oficial portuguesa experimentavam sem sucesso modelos importados do Leste (o seu ponto de apoio durante a luta pela independência), a palavra ‘Lusofonia’ começou a surgir na língua portuguesa. Aparecimento, aliás, tão tímido que continua por encontrar o seu criador, embora Fernando dos Santos Neves pareça bem posicionado para reivindicar tal direito, até pela oposição que enfrentou e venceu quando quis baptizar como ‘Lusófona’ aquela que hoje é a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, o principal rosto do Grupo Lusófona.


4 - Na realidade, esse vocábulo ainda não surgia na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (editada pela Verbo em 1963 e actualizada em 1991), no Grande Dicionário da Língua Portuguesa (da Sociedade de Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado em 1989), no Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro (da Lello Editores, de 1993), no Dicionário Enciclopédico da Língua Portuguesa (das Publicações Alfa, de 1992) e no Grande Dicionário da Língua Portuguesa (publicado pela editora Amigos do Livro, em 1981).


5 - De facto, a palavra só apareceria (embora sem a indicação do seu criador) mais tarde, no Dicionário Universal da Língua Portuguesa, da Texto Editora de 1995 e cuja terceira edição é de 1998; no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte, 7ª Edição de 1995; e no Dicionário da Língua Portuguesa, 3ª edição, editado pela Editora Nova Fronteira em 1999.


6 - O significado do termo ‘Lusofonia’ estava longe de ser consensual, porque se algumas vozes como as de Adriano Moreira e Fernando Cristóvão viam a nova palavra como um activo que importava valorizar porque representava um património de ideias, sentimentos, monumentos e documentação comum aos povos por onde passara a expansão e a evangelização portuguesa, também havia quem considerasse que “a criação da lusofonia, quer se trate da língua, quer do espaço, não pode separar-se de uma certa carga messiânica, que procura assegurar aos portugueses inquietos um futuro” [Margarido 2000:12], ou seja, a Lusofonia representava uma forma disfarçada de neo-colonialismo.


7 - Santos Neves faria a ponte entre estas duas posições antagónicas, alertando para as enormes potencialidades da Lusofonia, desde que passasse “de mero mito, dúbia ideologia ou vã retórica a um Espaço Lusófono realista”, mas alertando para o perigo de a Lusofonia “não poder ser, mas não estar automaticamente excluído que seja ou se torne, uma visão retardada ou camuflada dos colonialismos políticos, económicos e culturais de antanho (Portugal) ou de agora (Brasil)” [Neves 1999: 65].


8 - Nessa conjuntura, começou a surgir, ainda que paulatinamente (porque as reminiscências coloniais ainda eram vincadas), uma ideia que apontava para a necessidade de destrinçar a relação política colonizador–colonizado do relacionamento entre os povos e o reaproximar lusófono passou a ser encarado como necessário e desejável.


9 - Assim, passadas pouco mais de duas décadas sobre o encerramento do ciclo imperial português, era chegado o tempo para o “reconhecimento das afinidades que existem entre aqueles que têm a língua portuguesa como língua de comunicação ou de cultura” [Venâncio 1996: 60].


10 - Não constituiu, por isso, grande surpresa que, em 17 de Julho de 1996, tivesse sido instituída em Lisboa a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), através da assinatura da Declaração por parte dos Chefes de Estado de seis dos países-membros (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e Portugal) e pelo Primeiro-Ministro de São Tomé e Príncipe, em representação do Presidente da República desse país.


11 - Aliás, talvez seja possível ver nessa assinatura o culminar de um processo que teve como antecedentes próximos os dois Congressos das Comunidades de Cultura Portuguesa, realizados em Lisboa em 1964 e na Ilha de Moçambique em Julho de 1967, e a criação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) – um desejo materializado em 1989, em São Luís do Maranhão, que assentou numa ideia inicial de Adriano Moreira, proposta em 1988 no Recife, no Instituto Joaquim Nabuco, e reafirmada no discurso de recepção ao Presidente do Brasil, José Sarney, em Lisboa, na Assembleia da República, também em 1988.


12 - Neste processo de institucionalização da Lusofonia, nunca poderá ser esquecida a acção de José Aparecido de Oliveira, um sonhador pragmático que, através do empenhamento pessoal junto do poder político e de uma dinamização da sociedade civil dos vários países lusófonos, conseguiu cravar uma lança na lua [Braga 1999].


13 - No entanto, a afirmação da comunidade (tanto nos países-membros como nos fora internacionais) tem sido demasiado lenta, como a pouca visibilidade da organização deixa perceber, situação que levou Santos Neves a considerar a CPLP como um nado-morto, embora na esperança que, face à dureza da afirmação, os vários Estados-membros se empenhassem em provar o contrário.


14 - Este ensaio procura compreender o processo que se seguiu à formação da CPLP, tanto no que diz respeito às dificuldades de afirmação como no que concerne às várias alterações estatutárias e, sobretudo, traçar o quadro relativo à situação presente da organização e perspectivar o seu futuro num Mundo globalizado, interdependente e mergulhado numa crise que destruiu o paradigma vigente e dificulta a construção de um novo modelo de relacionamento entre os povos.


15 - Face ao exposto, o artigo procura resposta para a seguinte pergunta de partida:


16 - A passagem da CPLP para uma Comunidade Lusófona servirá os interesses da Lusofonia?


2. A indefinição inicial do projecto da CPLP


1 - Todas as citações dos estatutos têm por base a versão electrónica disponível no sítio oficial da CP (...)


17 - As indefinições no projecto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa remontam à sua origem porque, embora a designação oficial aponte para uma comunidade, o artigo 1º dos estatutos defende que a CPLP “é o foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua, da concertação político-diplomática e da cooperação entre os seus membros”1, ou seja, a organização foi instituída como um foro e não com uma comunidade, situação que José Aparecido de Oliveira preferia desvalorizar pois, na sua perspectiva, a CPLP enquadrava-se perfeitamente no conceito de comunidade teorizado por Ferdinand Tönnies no longínquo ano de 1887, na obra Gemeinschaft und Gesselschaft.


18 - Só que Aparecido de Oliveira tinha uma perspectiva de futuro e uma nobreza de espírito e de coração que, infelizmente, estão longe de constituir a regra, mesmo para aqueles que não concordam com a posição de Hobbes, segundo a qual o homem é visto como lobo do homem.


19 - Em nome da primeira dessas qualidades, nunca admitiu publicamente que, tendo consciência da impossibilidade de concretizar na íntegra o modelo que melhor servia os interesses da Lusofonia, aceitara aquilo que a conjuntura tornava possível, na esperança que o futuro lhe concedesse a oportunidade de completar o seu sonho.


20 - Não se tratava de considerar à maneira aristotélica que o óptimo era inimigo do bom, mas tão-somente de reconhecer que, passados tão poucos anos sobre o fim do Império, a CPLP teria obrigatoriamente de representar um processo e não um acto.


2 - Segundo entrevista concedida para a Tese de Doutoramento do autor – vide Pinto 2005: 308.


21 - Afinal, Aparecido sabia bem que, quando assumia que a ideia da CPLP lhe tinha surgido depois do “restabelecimento da democracia em Portugal, uma vez que pretendia ajudar a constituir um espaço de cooperação em que a democracia estivesse sempre presente”2, estava mais no campo do desejo ou da esperança futura do que no âmbito da realidade, como a situação política de vários dos PALOP fazia questão de provar.


22 - A segunda qualidade mandou-o viver num silêncio dificilmente partilhado pela tristeza derivada do facto de a criatura se ter voltado contra o criador, quando viu ser inventado (à última hora e para servir interesses que nada tinham a ver com a CPLP) um critério alfabético que lhe retirou a possibilidade de ser o primeiro Secretário Executivo da CPLP, situação que o seu Brasil natal não viria a corrigir quando lhe coube designar a personalidade que deveria ocupar o cargo entretanto deixado vago por Marcolino Moco.


23 - Na verdade, a CPLP não constava entre as prioridades da política externa do novo governo brasileiro, elemento que se encarregou de prolongar a fase de limbo de uma organização [cf. Chacon 2002: 47] que, desde o início, não fora vista da mesma forma por todos os Estados-membros.


24 - De facto, a hierarquização das prioridades (elemento que consta em anexo) não deixava dúvidas sobre o que cada país desejava com a criação da CPLP, pois Cabo Verde, a Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe elegiam como primeira prioridade o estímulo ao desenvolvimento económico, enquanto Angola e o Brasil colocavam a cooperação técnico-cultural no lugar cimeiro e Portugal privilegiava a concertação político-diplomática.


25 - Voltando ao Embaixador Aparecido de Oliveira, os Estados-membros da CPLP desperdiçaram todo o activo ou capital de entusiasmo militante, de simpatia e de competência sobejamente evidenciado nas suas visitas oficiais para apresentação do projecto (Guiné-Bissau, de 28 de Março a 5 de Abril de 1993; São Tomé e Príncipe, em 27 e 28 de Abril de 1993; Cabo Verde, de 8 a 13 de Maio; Moçambique em 1994) e nas mesas-redondas promovidas para a discussão do mesmo (no Rio de Janeiro, em Outubro de 1993; em Lisboa, em Dezembro de 1993; em Luanda, em Janeiro de 1994; em Cabo Verde, na segunda semana de Junho de 1994; um seminário em Maputo, ainda em 1994; finalmente, em Brasília, em 28, 29 e 30 de Outubro de 1994).


26 - Face às indefinições indicadas, não admira que a CPLP fosse praticamente desconhecida, tanto a nível interno dos Estados-membros, como no que concerne à comunidade internacional, designadamente no que diz respeito às integrações regionais de que os vários países lusófonos faziam parte.


27 - Ora, como forma de inverter essa situação, a CPLP foi procedendo a alterações estatutárias que serão objecto de estudo no item seguinte.


3. As principais alterações estatutárias da CPLP


28 - As alterações estatutárias, no que diz respeito ao estabelecimento de novos órgãos, podem ocorrer aquando das Conferências de Chefes de Estado ou de Governo que se realizam, ordinariamente, de dois em dois anos, ou durante os Conselhos de Ministros que acontecem anualmente.


29 - A maior alteração verificou-se logo em 2002, quando Timor-Leste (primeiro país independente do século XXI) foi admitido como membro de pleno direito, situação que levou a que a CPLP passasse a contar com oito membros.


30 - No que concerne às alterações ao nível dos órgãos, na IV Conferência (realizada em Brasília, em 2002) foram estabelecidos como órgãos adicionais da CPLP as Reuniões Ministeriais Sectoriais e a Reunião dos Pontos Focais da Cooperação. Mais tarde, em 2005, o X Conselho de Ministros estabeleceu como órgão adicional o Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP) e o XII Conselho de Ministros, reunido em Lisboa em Novembro de 2007, tomou igual resolução relativamente à Assembleia Parlamentar da CPLP.


31 - Como se constata, dos quatro novos órgãos apenas a Assembleia Parlamentar o é verdadeiramente, pois os restantes três já existiam só que não faziam parte dos órgãos previstos no acto da criação. Aliás, também a nível do Secretariado Executivo se verificou uma alteração, porque o cargo de Secretário--Executivo Adjunto (que tanta celeuma provocara, devido à incompatibilidade de Dulce Maria Pereira com o seu Secretário-Executivo Adjunto, situação que levou à divisão de pastas) terminou na Cimeira de Bissau de 2006, sendo substituído pelo de Director-Geral.


32 - Com estas alterações, sobretudo a última, a CPLP procurou ganhar um maior pragmatismo porque o Director-Geral (a quem compete, sob orientação do Secretário Executivo, a gestão corrente, planeamento e execução financeira, preparação, coordenação e orientação das reuniões e projectos activados pelo Secretariado) não é indigitado por um Estado-membro, como acontecia com o Secretário-Executivo Adjunto, mas recrutado entre os cidadãos nacionais dos Estados-membros, mediante concurso público, pelo prazo de 3 anos, renovável por igual período.


33 - Além disso, as reformas indicadas também procuraram resolver as dificuldades decorrentes da necessidade de articulação da cooperação bilateral com a multilateral e o problema daquele que vinha sendo apontado como um elefante branco, o IILP, pois não bastou pintar de cor-de-rosa a casa oferecida por Cabo Verde e recuperada por Portugal para que o IILP tivesse garantido um futuro da cor das suas instalações.


3. Citação feita a partir de uma entrevista concedida ao autor. Vide Pinto 2007: 233.


34 - Como o anterior Secretário-Executivo Luís Fonseca denunciou, “o Instituto terá de ser tomado mais a sério pelos Estados”, pois “não se pode esperar que o Instituto possa ter o desempenho ou protagonismo que seria normal esperar-se de uma organização como essa, se não tiver os recursos – e os Estados têm sido bastante avaros em termos de disponibilização de recursos”


35 - Aliás, parece desejável que, a exemplo daquilo que se verifica para a escolha do Director-Geral, os estatutos do IILP venham a ser objecto de alteração, terminando com a rotatividade para o cargo de Director e cedendo lugar a um concurso internacional destinado a essa selecção.


36 - Para o presente artigo torna-se, ainda, importante salientar uma outra alteração estatutária que se prende com a criação do Estatuto de Observador na II Cimeira na Cidade da Praia em Julho de 1998 e, em 2005, no Conselho de Ministros da CPLP de Luanda, das categorias de Observador Associado e de Observador Consultivo, pois essa criação permitiu uma maior abertura da CPLP.


37 - Assim, logo no XI Conselho de Ministros, reunido em Bissau (Julho de 2006), foi recomendada a atribuição do Estatuto de Observador Associado à República da Guiné Equatorial e à República da Ilha Maurícia, tendo o Senegal recebido esse mesmo Estatuto na Conferência de Chefes de Estado e de Governo, realizada a 25 de Julho de 2008, em Lisboa.


38 - Além disso, outros Estados, como Marrocos, Andorra e Filipinas, já manifestaram o desejo de ascenderem a essa categoria e alguns países, como a Croácia, a Roménia, a Ucrânia, a Indonésia e a Venezuela, colocam nos seus horizontes próximos a obtenção desse estatuto.


39 - No que se refere à criação do estatuto de Observador Consultivo, cujo regulamento foi aprovado pela XIV Reunião do Conselho de Ministros da CPLP (Cidade da Praia, 20 de Julho de 2009), permitiu à comunidade uma maior ligação à sociedade civil, como se comprova pelo facto de quase meia centena de fundações, universidades, institutos, associações e outras instituições representativas dessa sociedade fazerem parte da lista de Observadores Consultivos.


40 - Ainda no que aos Observadores Consultivos diz respeito, o facto de a CPLP ter sede em Lisboa talvez explique que a larga maioria desses Observadores Consultivos também estejam sedeados na capital portuguesa, embora nesse estatuto também se integrem fundações localizadas no Brasil, em Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Macau.


41 - Talvez fruto desta abertura à sociedade civil e da pressão que esta acaba por fazer junto dos detentores do poder, não foi apenas a nível estatutário que a CPLP evolucionou, pois o mesmo se verificou no que concerne à vontade individual de vários Estados-membros, matéria que será desenvolvida no próximo ponto.


4. As mudanças derivadas das vontades individuais


42 - Em 2009, o Movimento Internacional Lusófono elegeu como personalidade lusófona do ano o Embaixador Lauro Moreira, então chefe da Delegação do Brasil junto da CPLP, uma comitiva numerosa que funciona separada da Embaixada do Brasil em Portugal.


43 - Essa distinção premiou o labor deste diplomata muito ligado (não apenas emocionalmente) a José Aparecido de Oliveira. Embora Lauro Moreira não o reconheça, pois coloca a questão mais do ponto de vista pessoal do relacionamento de Aparecido com algumas personalidades da nova administração brasileira, a distinção revelou que o Brasil, sob a presidência de Lula da Silva, decidira finalmente colocar a CPLP entre as suas prioridades, reconhecendo a razão que assistia a Santos Neves quando, num momento anterior, denunciara que as elites brasileiras ainda não tinham compreendido que não haveria Lusofonia sem o Brasil, mas que, sem a Lusofonia, o Brasil continuaria a ser o eterno país do futuro adiado.


44 - Aliás, esta alteração não foi apenas do lado brasileiro, pois vários outros países, designadamente Portugal, a Guiné-Bissau e Timor-Leste também passariam a contar com embaixadores permanentes junto da CPLP, situação preferível àquela que se verificara na fase anterior em que as embaixadas cediam, por sua iniciativa, os embaixadores, mas podiam a qualquer momento exigir o seu regresso.
45 - Aliás, nesse período, o reduzido número de embaixadores junto da CPLP fazia com que cada um deles tivesse de assessorar várias áreas, acabando por não se especializar em nenhuma delas. Como o povo se encarregou de proverbiar, eram “pau para toda a obra”.


46 - Voltando às nomeações de embaixadores permanentes, convirá frisar que entre a nomeação de Lauro Moreira, ocorrida em Julho de 2006, e a segunda indigitação, a de Apolinário Mendes de Carvalho feita pela Guiné-Bissau em Outubro de 2007, passou mais de um ano. Este elemento volta a apontar para a forma pouco homogénea como os vários membros continuavam a ver a comunidade, até porque não parece verosímil que no conjunto dos países da CPLP fosse a Guiné-Bissau aquele que dispõe do segundo corpo diplomático mais numeroso.


47 - Parece, igualmente, digno de registo o facto de estas indigitações terem ocorrido durante o mandato de Luís Fonseca como Secretário-Executivo, pois se “o hábito não faz o monge”, não é menos verdade que quando Cabo Verde indicou para o cargo um dos seus embaixadores mais conceituados, ajudou a criar condições para acabar com a ‘vida habitual’, isto é, com o marasmo que se estava a instalar na comunidade. É que Luís Fonseca, tal como Geraldo Vandré, defende a ideia que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.


48 - Certamente que uma das últimas alegrias de Aparecido de Oliveira (apesar da doença severa, sempre acendia um brilho no olhar quando se falava da CPLP) foi a visita que Luís Fonseca e Lauro Moreira fizeram a sua casa para lhe dar conta dos novos caminhos que a comunidade se propunha trilhar.


4. Afirmação proferida em entrevista concedida ao autor. Vide Pinto 2005: 678.


49 - Afinal, era o reassumir de uma ideia que fora sua, embora a modéstia o levasse a recusar protagonismos para os quais não se considerava fadado. Para ele havia figuras muito mais importantes, como “Agostinho da Silva e Darcy Ribeiro [que] iluminaram o caminho”4.


50 - Porém, as vontades individuais já se vinham manifestando desde há vários anos, como se comprova pelas contribuições voluntárias feitas por alguns Estados-membros e destinadas ao funcionamento do Instituto Internacional da Língua Portuguesa. Nesse âmbito, o contributo tem recaído sobretudo em Angola, Portugal e no Brasil, situação que encontra justificação nas realidades económicas dos vários membros e que não parece merecer algumas reservas feitas pelos analistas.


51 - Ainda no que às iniciativas individuais de cada Estado-membro diz respeito, não pode deixar de ser mencionada a decisão de Cabo Verde de inscrever na sua Constituição o estatuto de cidadão lusófono. No entanto, o exemplo não frutificou e a semente parece ter-se perdido, pois os políticos e os juristas dos oito Estados-membros ainda não conseguiram montar o Estatuto de Cidadão da CPLP.


52 - Por isso, incomodado com esta morosidade voluntária, Santos Neves [2007: 3] deu largas ao seu descontentamento servindo-se das palavras de Cícero nas Catilinárias “até quando continuarão os Estados de Língua Portuguesa e respectivas burocracias a abusar da nossa paciência lusófona?”. Infelizmente, a pergunta ainda não teve resposta.


5. De uma comunidade de países a uma comunidade de povos


53 - Indicadas as características mais relevantes que têm marcado a vida da CPLP, importa, agora traçar um estudo prospectivo da comunidade, de forma a acautelar esse futuro, ou seja, como forma de dar cumprimento à Lusofonia que interessa.


54 - Ora, a primeira constatação a fazer prende-se com a necessidade da CPLP (provavelmente através do IILP) investir mais na promoção da língua portuguesa ao nível das organizações internacionais, como língua de trabalho ou, preferencialmente, como língua oficial. Além disso, urge implementar uma política de ensino da língua portuguesa fora dos países da CPLP, designadamente nos países onde as diásporas lusófonas detêm uma presença significativa, ou onde camadas da população se sintam atraídas pela aprendizagem da língua de Camões, de Craveirinha, de Viriato da Cruz, de Jorge Amado, de Baltazar Lopes…


55 - Desta promoção da língua portuguesa deverá fazer parte uma estratégia lusófona que permita ao Brasil, aquando da inevitável reformulação do Conselho de Segurança da ONU, um lugar como membro permanente. Se esse desiderato for alcançado, o português tornar-se-á língua oficial da Organização das Nações Unidas.


56 - De facto, convém não esquecer que o grupo designado por “Coffee Club”, formado pela Itália, Coreia do Sul, Argentina e Paquistão, pretende unir esforços no sentido de impedir que os respectivos vizinhos entrem para o Conselho de Segurança, situação que, no caso do Brasil, ainda assume mais gravidade conhecida que é a pouca vontade mexicana para que a potência emergente lusófona assuma um lugar de destaque na comunidade internacional.


57 - Uma outra constatação tem a ver com uma questão que se arrasta desde os primórdios da CPLP. De facto, como a própria designação explicita, trata-se de uma comunidade de países e não de povos, factor que impossibilita a adesão de regiões com grandes afinidades com a cultura lusófona, mas com vínculo político a outros Estados, como são os casos da Galiza (a mãe da Lusofonia), de Macau, de Malaca, de Goa e de Casamansa.


58 - Aliás, Fernando Cristóvão, o criador dos “três círculos da lusofonia”, reconhece a importância dessas regiões ao englobá-las, juntamente com os oito Estados-membros da CPLP, no primeiro círculo ou no núcleo da Lusofonia. Por isso, há que ter em conta as palavras do Presidente das Irmandades da Fala da Galiza e de Portugal, José Fontelo, quando não enjeita a responsabilidade de ajudar a “manter uma Lusofonia europeia coesa, de 20-25 milhões de galego-portugueses, sem esquecer os contingentes migratórios nossos que pelas Europas andam, além de outras partes do mundo” [Fontelo 2000:134].


59 - Uma última constatação tem a ver com o facto de os estatutos, no artigo 6º, preverem que “para além dos membros fundadores, qualquer Estado, desde que use o Português como língua oficial, poderá tornar-se membro da CPLP, mediante a adesão sem reservas aos presentes Estatutos”, desde que a aprovação dessa adesão seja “por decisão unânime da Conferência de Chefes de Estado e de Governo”. Esta disposição estatutária poderá vir a tornar-se perigosa para a comunidade.


60 - De facto, a Guiné Equatorial, um dos países interessados em tornar-se membro de pleno direito da CPLP, já instituiu o português como mais uma das suas línguas oficiais (as outras são o espanhol e o francês) e, por isso, deseja que esse estatuto lhe seja concedido.


61 - No caso de merecer a aprovação unânime dos Estados-membros, este pedido de adesão poderá vir a traduzir-se num problema para a CPLP, uma vez que o relatório de 2010 da Fundação Mo Ibrahim, relativo à boa governação (um índice que resulta do estudo de 88 variáveis) coloca a Guiné Equatorial na 46ª posição entre os 53 países africanos, com um índice de apenas 34,7 e com o “pormaior” de nenhuma das rubricas consideradas ter obtido classificação positiva.


62 - Na verdade, em África, a Guiné Equatorial detém a penúltima posição no que concerne à participação e direitos humanos com apenas 19,1; a 42ª tanto no que diz respeito à oportunidade económica sustentável como ao desenvolvimento humano, com 34,9 e 39,1, respectivamente; e a 41ª posição relativamente à segurança e primazia da lei, com 45,7.


63 - Como os estatutos da CPLP, na alínea b) do número 1 do artigo 5º, estipulam a “não ingerência nos assuntos internos de cada Estado”, a comunidade não poderá a posteriori vir a exigir à Guiné Equatorial que proceda às reformas necessárias, visando alcançar a democracia


64 - Assim sendo, a Conferência de Chefes de Estado e de Governo deverá ter muita atenção no que concerne não apenas a esta, mas a futuras solicitações de adesão, sendo certo que este cuidado não se destina a fazer da comunidade um compartimento-estanque (situação altamente condenável por parte de uma Lusofonia que se pretende ecuménica), mas sim a não delapidar a imagem da comunidade.


65 - Aliás, os países da CPLP que já dispõem de um índice de boa governação bom ou aceitável terão de ter presentes as dificuldades que sobretudo dois dos membros da comunidade ainda apresentam nesse âmbito.
À guisa de conclusão


66 - Terminada a exposição, é tempo de saber qual o sentido da resposta encontrada para a questão colocada na Introdução e que aqui se repete:


67• A passagem da CPLP para uma Comunidade Lusófona servirá os interesses da Lusofonia?


68 - Os argumentos apresentados, tanto no que concerne às dificuldades de afirmação da CPLP, como no que diz respeito às alterações estatutárias que têm vindo a ser postas em prática, numa conjuntura mundial tecida com malhas de interdependência, apontam no sentido de uma resposta afirmativa.


69 - Na verdade, a exemplo do que se verificou relativamente à implementação do acordo ortográfico, quando alguns portugueses renitentes tiveram de perceber que não eram donos mas sim condóminos da língua (pois esta pertence a todos aqueles que a usam), também parece chegado o momento de os oito Estados-membros da CPLP perceberem que a Lusofonia não constitui um exclusivo ou um monopólio seu. Aliás, o facto de a designação actual ser a de uma Comunidade dos Países e não uma Comunidade de Países pode ser vista como uma visão patrimonialista e um desejo excessivo de posse.


70 - Assim sendo, impõe-se a construção de uma Comunidade Lusófona onde haja lugar para países, mas também para comunidades e regiões, ou seja, para os povos que se revêem no passado, mas também (ou principalmente) no presente e no futuro da cultura lusófona.


71 - De facto, o Estatuto de Observador Associado, apesar de constituir uma iniciativa meritória, seguiu o modelo do Estatuto de Membro da CPLP, uma vez que apenas contempla países. Este elemento circunscreve a ‘Lusofonia Oriental’ apenas a Timor-Leste, desamparando as comunidades que continuam a reclamar o reconhecimento da sua matriz lusófona.


72 - Por isso, parece aconselhável a alteração do critério, no sentido de reconhecer aos povos e comunidades filiados na cultura lusófona ou que com ela mantêm afinidades o direito de integrarem a Comunidade Lusófona.


73 - Não será um processo fácil, até porque alguns lusófonos parecem mais apostados em erguer muros do que em construir pontes de entendimento. Mas é um processo necessário, para que a Lusofonia atinja o patamar que, se houver vontade política, estará ao seu alcance.


74 - Como o povo proverbializa: “Seja bem-vindo quem vier por bem!”


Autor: José Filipe Pinto


 


CPLP: Paradoxo certo ou futuro incerto?


A nossa comunidade tem muitas datas de nascimento, como o filho escondido de quem não se sabe a história certa do aparecimento. Oficialmente, foi a 17 de Julho de 1996 que no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, se assinaram os documentos constitutivos da mais nova Comunidade linguística. Mas para trás ficavam versões várias de paternidade, portuguesas, brasileiras e também africanas. Em qualquer uma das versões dá-se destaque ao papel que cada parte jogou, numa animação pouco condizente com o arrastamento de todos para que de facto se investisse nesta formação como coisa principal.


2A - comunidade tem estatutos, como se deve, que determinam que se trata de “um foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua, da concertação político-diplomática e da cooperação entre os seus Membros”. Estas premissas existenciais são importantes para melhor se entender o que é e o que não é a CPLP. Um foro e normalmente uma ligação ténue, não necessariamente institucionalizada de forma rígida. E um espaço que pode servir para intercâmbios e trocas de opinião e de experiência, mas não implica necessariamente uma dimensão política e regimental firme.


3A - profundar a amizade é algo um pouco mais emotivo que racional. Amizade entre países é uma formulação diplomática desprovida de qualquer especificidade. É o que se coloca em qualquer documento ou comunidade, até com países com os quais se mantém um intercâmbio cada dez anos. No entanto, ao ser considerado privilegiado, espera-se algo mais, que pode ser traduzido apenas num desejo não corroborado com nenhum arranjo preconcebido. Nada nos estatutos ou na postura da criação da CPLP deixa transparecer como poderia ser lido tal hipotético desejo.


4A - concertação político-diplomática é algo técnico e preciso, que na realidade pode ser feito por um grupo de países com interesses comuns. Parece ser certo que a CPLP conseguiu essa concertação em momentos importantes para os seus membros, embora também seja verdade que a descontinuidade geográfica da Comunidade tem sido um factor mais centrípeto que centrífugo.


5 - Esta é, pois, a cooperação entre os membros. Por razões óbvias, ela tem de (e deve) ser desequilibrada, no sentido em que os que têm mais devem apoiar os que têm menos. No caso concreto da Comunidade, o índice de desenvolvimento de Portugal e o tamanho do Brasil são factores de monta para que os dois ofereçam muito mais que os demais reunidos. O veredicto nem sempre mostrou essa certeza.


6A - CPLP tem sido marcada pelo mito fundador, como o são todas as instituições e países.


7 - O Brasil carrega o peso do seu desprezo aparente pela lusofonia, no momento crucial da sua fundação como a suposta vertente privilegiada. Ninguém nega o papel fundamental que algumas personalidades brasileiras (como o embaixador Aparício de Oliveira ou os Presidentes Itamar Franco e José Sarney) tiveram no cerimonial da constituição. Mas isso não chega e o Brasil enquanto país ficou sempre a dever à Comunidade um empenho mais profícuo, até bem recentemente, quando uma nova dinâmica surgiu com a administração do Presidente Lula da Silva. A vocação Atlântica do Brasil e o seu papel na emergência de um novo Sul ajudam a antever um novo papel para a CPLP.


8 - Portugal fica sempre marcado pelas associações de que quer fazer da CPLP o que a Grã-Bretanha, ou a França fizeram da Commonwealth ou da Francophonie. Em ambos os casos a liderança do país europeu ancora é indisputável, mas o mesmo é difícil de imaginar no espaço lusófono. A opinião pública portuguesa revela à luz do dia aspirações que ficam encobertas em negociações delicadas sobre protagonismos. Quer muitas vezes uma política de língua imperial, uma margem de influência que irrita por se tratar de uma lembrança do colonialismo tardio.


9 - Os países africanos membros da Comunidade também têm os seus sobressaltos de adolescência, querendo afirmar-se quando é desnecessário e emprestando à Comunidade um utilitarismo que esta não pode assumir por falta de meios equivalentes a outras congéneres. Estes países ainda buscam as suas identidades e pernoita na lusofonia a ideia de que ela pode contrapor a necessidade de diferenciação do recém-independente.


10 - Finalmente, o último convidado da festa (Timor Leste) tem na sua liderança o desenho de contradições entre a ligação mais estreita a uma Comunidade ainda mais longínqua geograficamente e os imperativos pragmáticos da vizinhança.
11 - Poderão estes paradoxos ser resolvidos com amizade? Mesmo com carradas de amizade, a realidade da descontinuidade acabará por impor-se de forma dramática e sem hesitações. A não ser que se invista seriamente num conjunto de factores que sejam de facto únicos.


12 - A actual interconectividade do mundo lembra-nos que cada vaga da globalização nos aproxima mais, uns dos outros, e nos permite aceder a mais informação. Sem uma ampla liberdade e aumento das oportunidades, não podemos transformar esse desenvolvimento da informação em algo que melhore as nossas vidas e nos dê maior felicidade. Admitindo que estamos a entrar num patamar de maior conhecimento e individualidade, é natural que as nossas ansiedades e certezas nos projectem para redutos de segurança identitários. Cada vez mais esse desejo de encontrar referências comuns se faz com formas novas de comunicação, muitas no domínio do virtual. Uma língua e cultura com ambições globais, marcando-se num espaço com descontinuidade geográfica, só podem sobreviver e crescer com o pleno uso das novas linguagens e tecnologias.


13 - A CPLP sente-se quando um grupo de cidadãos de países lusófonos encontra pontos de referência comuns. Não quando se organiza uma reunião formal de concertação político-diplomática Para fortalecer a base do relacionamento, pode-se traduzir amizade num conjunto de acções concretas A meu ver, é sobretudo na área cultural e nas indústrias criativas que se abrem potencialidades. Sem essa alavanca, a Comunidade não será muito diferente de outros agrupamentos de que nos lembramos apenas ‘quando dá jeito’.


14 - As oportunidades e perspectivas da CPLP são quase ponto obrigatório nas reuniões várias dos órgãos da Comunidade. Mas o que poderá mudar o futuro comum é o engajamento concreto na utilização dos veículos da língua que possibilitem a sua sobrevivência. Os exemplos de anglicismos são a parte mais evidente de um iceberg de contradições. O paradoxo interno que demonstra o que a sociedade considera valorizante e aspira, querer ser reconhecido por quem fala inglês, não o seu parceiro da Comunidade. É uma batalha complexa, não específica ao nosso espaço, como demonstra a constante polémica do excepcionalismo cultural francês. Mas, como esse exemplo bem demonstra, a resposta está no desenvolvimento de capacidades informáticas, na dinâmica das Academias responsáveis por acordos ortográficos, no investimento forte nos intercâmbios culturais, na formatação de referências criativas ligadas às novas tecnologias.


15 - A esquizofrenia é uma doença mental em que se perde o contacto com a realidade, vivendo-se num mundo imaginário, com fragmentação da personalidade. É a doença mais constrangedora porque se carrega pela vida inteira. À escala de um grupo, ninguém se atreve a falar de comportamento esquizofrénico, é demasiado pesado e negativo. Por isso mesmo, as instituições tentam sempre assentar os seus pés (neste caso, as suas decisões) em algo realizável e perene. O futuro da CPLP será aquele que assenta na possível, não esquizofrénica, ambição dos seus membros.


Autor: Carlos Lopes

 



Breve ensaio sobre lusofonia: convergências e divergências


Ao começar a estruturar este texto tive em conta, talvez, dois aspectos. Um: que a lusofonia, tal como a angolanidade (é um exemplo) ou a bantuofonia são conceitos baseados em manifestações de sociabilidade. Acontece que, por razões que por ora vamos adiar, o factor comunicação emergiu ultimamente a propósito da criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
2 - Há quem defenda, por seu lado, que estes conceitos se relacionam com o carácter da nacionalidade dos indivíduos. No plano geral, têm a ver igualmente com os seus provérbios, lendas e histórias transmitidas de geração em geração. Há ainda que acrescentar uma filosofia de vida característica de povos e suas origens.


3 - As minhas notas sobre a CPLP, algumas perdidas e outras resgatadas, foram publicadas ou lidas em diferentes jornais de diferentes países. Confesso piamente que não sei dizer como procederei desta vez para acrescentar mais qualquer coisa ao convencimento do leitor. Não pretendo redigir um texto à guisa de confessionário.


4 - Mais do que a língua portuguesa, essa organização tri-continental visou na sua génese criar um mercado de transacções comerciais – em que Angola, dadas as suas peculiaridades materiais, tidas como ainda por explorar em grande medida, era, pois, um alvo a conquistar.


5 - Isso levou a mim e a outros observadores, a duvidarmos da real orientação da CPLP. Desde logo porque o processo que conduziu à sua constituição em organização propriamente dita começou inquinado: em alguns países, soube-se da sua fundação às vésperas. Mas os governos, mais do que as sociedades civis dos países membros, estavam com pressa.


6 - Nascem ideias, morrem ideólogos. A respeito da CPLP, advertimos por diversas vezes que a sua raiz romântica não era razão suficiente para selar um pacto inter-nações. Tem, ademais, contra si, a intangibilidade física, que leva as pessoas a circularem e a comunicarem-se intensamente, diariamente.


7 - Todavia, os partidários da globalização saltaram-nos em cima. A descontinuidade geográfica, atacaram, é facilmente superável nos nossos dias pela velocidade de comunicação proporcionada pelos modernos meios de comunicação e relacionamento via Internet. Começa a partir daqui uma discussão tecnológica, mas também humanista: que é o que, na verdade, está no centro de toda a nossa argumentação?


8 - A princípio, a CPLP era para ser um pacto político que perseguia, afinal, interesses mercantis. Na escala de valores assumida pela organização, a língua portuguesa aparecia numa cotação em alta, a tal ponto que se tornou o próprio pilar da sua fundação.


9 - Mas se formos a ver a fundo, tal não corresponde à realidade objectiva da maior parte dos países membros: nenhum dos países, à excepção (ainda assim discutível) do Brasil e de Portugal, têm a língua portuguesa como a língua primária dos seus habitantes.


10 - Vejamos o segundo aspecto, como mencionei no início. A lusofonia ou a angolanidade ou a moçambicanidade afere-se a partir da observação da prática de um conjunto de manifestações de sociabilidade das pessoas: gostos similares por comidas, o modo de prepará-las e o modo de consumi-las, por música, suas letras e melodias, e a dança – quer sejam colectivas, quer sejam individualizadas.


11 - O costume de sunguinar é tipicamente africano. Tem a ver com uma quietude crepuscular das aldeias elevada a uma dimensão de lembranças e inquietações metafísicas, que ocorrem não na mesma intensidade ou pelo menos na mesma relação com a vida de um europeu.


12 - É também como antecipação de boas colheitas e comida farta: no outro ângulo, muito interessante, está ligado ao ritual de iniciação sexual dos jovens. É no súnguino que as conquistas começam a desenrolar-se. No fundo, uma autorização tácita.


13 - Todas essas manifestações são subsidiárias do tipo físico ou comportamental do indivíduo. Logo: um português não dançará a Njimba se não lha ensinarem e um angolano, o Vira. Um conhecido escritor angolano costuma repetir que não consegue ficar lá fora mais de três dias: tem que voltar, para “recarregar-se” com uma boa funjada.


14 - Digo, a terminar, que o “capote” da lusofonia não pode servir para suprimir a diversidade étnica e linguística dos países de língua oficial portuguesa. Ou seja: a individualidade da personalidade de cada um não pode ser abolida. Noutro texto já defendi (e relembro aqui) a paridade entre o português e as línguas nacionais de todos.


Kajim Ban-Gala

 

Perguntas e Respostas: «Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados-Membros da CPLP»
13-01-2022

O «Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados-Membros da CPLP» foi aprovado na XXVI Reunião do Conselho de Ministros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), decorrida, em Luanda, Angola, no dia 16 de julho de 2021.

O Acordo entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2022 nos Estados que entregaram os respetivos instrumentos de ratificação no Secretariado Executivo da CPLP, nomeadamente, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Portugal e Guiné-Bissau. Em janeiro de 2022, o Secretariado Executivo recebeu o depósito do instrumento de ratificação de Moçambique, sendo que entrará em vigor no dia 1 de fevereiro de 2022.

O Secretariado Executivo da CPLP congratula-se com a rapidez verificada no processo interno de ratificação em cada um destes Estados-Membros e, face a diversos pedidos de esclarecimento recebidos, apresenta respostas às seguintes perguntas frequentes:

1 - O que prevê o Acordo sobre a Mobilidade?

O Acordo sobre a Mobilidade é um Acordo-quadro que estabelece a base legal sobre a qual se construirá uma maior mobilidade e circulação no espaço da CPLP. Os Estados-Parte passam a poder celebrar acordos adicionais em matéria de mobilidade, tendo a liberdade de escolher as modalidades de mobilidade que pretendem aplicar (Estada de Curta Duração CPLP; Estada Temporária CPLP; Visto de Residência CPLP e Residência CPLP); o grupo de beneficiários; assim como os outros Estados-Parte com quem pretendem estabelecer a parceria.

2 - Que países já notificaram a CPLP da respetiva ratificação do Acordo?

Até 31 de dezembro de 2021, deram entrada no Secretariado Executivo da CPLP os instrumentos de ratificação de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Portugal e Guiné-Bissau. Em janeiro de 2022, já deu entrada no Secretariado Executivo o depósito do instrumento de ratificação de Moçambique.

3 - Qual a data de entrada em vigor do Acordo?

A entrada em vigor do Acordo ocorreu no dia 01 de janeiro de 2022, mas apenas para os quatro Estados indicados na resposta anterior (i.e., os Estados-Parte). Para os restantes Estados, a entrada em vigor ocorrerá após o depósito dos respetivos instrumentos de ratificação no Secretariado Executivo da CPLP.

4 - Qual o efeito da entrada em vigor nos Estados?

A partir de 01 de janeiro de 2022, os Estados-Parte começam a implementar o Acordo, isto é, passam a poder estabelecer, entre si, as parcerias referidas na resposta 1.

5 - Quando é que os cidadãos dos Estados-Membros poderão beneficiar das medidas previstas no Acordo?

O objetivo do Acordo é aumentar a mobilidade para os cidadãos dos Estados-Membros no espaço da CPLP. Contudo, o ritmo e a medida exata deste aumento, para cada cidadão em concreto, dependerá da medida de integração no Acordo do seu Estado de origem (i.e., da conclusão do respetivo processo de ratificação) e, posteriormente, das parcerias que o Estado de origem venha a estabelecer, no quadro do Acordo.

De notar que, tal como referido na resposta 1, os Estados têm a liberdade de decidir as categorias dos beneficiários (p. ex., agentes do Estado, professores, estudantes, agentes culturais, entre outros); as modalidades de mobilidade aplicáveis (p. ex., a isenção de vistos, entre outras); assim como os Estados com quem pretendem celebrar a parceria (p. ex., o Estado A decide estabelecer uma parceria com o Estado B).

6 - Está prevista no Acordo a isenção de vistos (ou “livre circulação”) entre os Estados da CPLP?

Sim, a isenção de vistos é uma das modalidades previstas no Acordo. No entanto, a aplicação de tal modalidade necessitará sempre de parcerias adicionais celebradas entre os Estados-Parte, prevendo, em concreto, a isenção de vistos.

7 - Os compromissos internacionais sobre mobilidade em vigor nos Estados-Membros, estão salvaguardados?

O Acordo reconhece e salvaguarda os compromissos internacionais em matéria de mobilidade que os Estados-Membros da CPLP assumiram no quadro da respetiva integração regional. A mobilidade na CPLP será assim construída sem condicionar os compromissos internacionais de que os Estados-Membros da CPLP sejam já Partes.

 

Na ponta da língua: o que é lusofonia? Etimologia e interpretações críticas
Por GABRIEL FERNANDINO | MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA (UFMG) E BACHAREL EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS (PUC MINAS)
24/09/20

A cada pergunta, no mínimo duas respostas há: aquela breve, enxuta, outra mais ampla e, às vezes, divagante. No que diz respeito à resposta curta, a palavra “lusofonia” explica a si mesma. Trata-se de justaposição das entradas “luso”, que do latim quer dizer “relativo a lusitano”, e “fonia”, essa já vinda do grego, equivalente a “língua”. Trocando em miúdos, lusofonia pode ser entendida como “qualidade daqueles que falam a língua dos lusíadas”, lusos ou portugueses.

Se a pulga atrás da orelha pulou, fica o rodapé: Lusitânia foi o nome atribuído a uma província ibérica, correspondente hoje à parte da Espanha e de Portugal.

Assim como a palavra “lusíadas”, Lusitânia vem de “Lusus”, figura legendária ligada a Baco e creditada como fundadora mitológica da região.

Desse literal boca-a-boca etimológico, viria inclusive o título da magistral obra de poesia épica escrita por Camões nos idos dos séculos XVI, “Os Lusíadas”... percebem como já passamos à segunda forma de responder uma pergunta, aquela mais ampla e que incorre na possibilidade da perda do fio da meada? Façamos, então, neste espaço curto, alguns sobrevoos que poderiam ser longos.

A lusofonia, celebrada ao 5 de maio, é também entendida como uma comunidade de 9 países espalhados no globo cuja língua materna, administrativa ou secundária é o português. Essa população esparsa de cerca de 280 milhões de pessoas tem corpo institucional na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, fundada em 1996 com o objetivo de aproximar os estados-membros por meio da cooperação financeira e cultural. Por sinal, sabia que a mencionada CPLP promove uma espécie de Jogos Olímpicos dos falantes de português, os Jogos da Lusofonia? Se não, calma, assim como ocorreu ao passar a saber quem foi Lusus, pouca coisa vai mudar em sua vida.

O que talvez mude, ou incomode pelo menos, é a interpretação de intelectuais, como Adriano Freixo, quem defende que, salvo para Portugal, a CPLP seria desprovida de sentido para os seus membros. Para ele, a instituição teria sido originada nos interesses específicos portugueses, com a busca de reinserção internacional no cenário de pós-Guerra Fria por meio da aproximação às ex-colônias.

Na mesma linha crítica, o português Boaventura de Sousa Santos aponta que a CPLP está demasiadamente focada em Brasil e Portugal. Nem tudo são flores ou mera etimologia, não é?

Atalhando o escrito: afinal, o que é Lusofonia? Bem, mais do que conceitos aqui entregues, lusofonia parece não ser nem a resposta curta, nem aquela mais longa, embora permeie ambas. Ao meu lusófono, parcial e amador ver, lusofonia parece ser uma “vivência”, ou experiência, que articula tacitamente distintas visões de mundo sob um mesmo nome que não comporta todas suas particularidades. Falar em “trama de diferenças”, como afirmou Laura Padilha, ou mesmo em “lusofonias”, aparenta ser o mais acertado; isso já é, porém, o pontapé para uma discussão ampla...

 

Português é o melhor idioma para a música?
Por Daniel Brazil

O domínio da canção de língua inglesa em todos os cantos do mundo, impulsionado pelo poder econômico e midiático dos EUA, faz muita gente pensar que a econômica sintaxe anglo-saxônica é favorável ao formato canção. Mas será mesmo?

Há línguas que soam mais ou menos ásperas, guturais, flexíveis, duras ou melodiosas. A canção alemã, por exemplo, nunca emplacou fora de suas fronteiras. A francesa teve um período de popularidade, mas foi soterrada pelo rock britânico a partir dos anos 60. A italiana, muitas vezes excessiva e melodramática, idem. E a canção brasileira (leia-se bossa nova) sempre foi considera elegante e elitizada, não se constituindo um sucesso popular em países europeus (Na América do Sul é diferente, até pelo “poder econômico e midiático” regional exercido pelo Brasil). Já o samba, mais empolgante, é visto geralmente como trilha sonora de carnaval, algo folclórico e barulhento.

Ocasionalmente, alguns gêneros caem na moda, e fazem a festa no chamado Primeiro Mundo. Já foi a lambada, agora é o forró. Um fã de música brasileira, Mose Hayward, levantou uma interessante teoria em um artigo que está causando certo debate na internet. Com o título “Porque o Português é o Melhor Idioma Para a Música”, o autor elenca uma série de elementos que reforçam a sua tese. Detalhe: ele é americano, estudou em Barcelona, conhece o Brasil e fala várias línguas, inclusive a nossa.

Para Hayward, a língua portuguesa tem uma quantidade enorme de sons vocálicos, que a deixam mais fluida e melodiosa. O fato de muitas palavras terminarem com vogais faz com que o(a) cantor(a) fique mais à vontade, podendo flexionar ou modular a emissão de voz, alongando o som ad libitum. Para esse efeito também colaboram os ditongos e tritongos, claro.

A quantidade limitada de consoantes também ajuda. Citando a cantora francesa (de choro e samba) Cléa Thomasset, ele detecta que usamos as consoantes de forma percussiva, marcando o ritmo de forma mais expressiva. Vários sambas sincopados seriam exemplos perfeitos, mas ele destaca Elis Regina cantando Nega do Cabelo Duro (Ary Barroso) como corolário da tese. No verso “qual é o pente que te penteia” as consoantes tamborilam como um tamborim, cabendo a cada intérprete percutir a língua nos dentes com a intensidade que achar conveniente.

Claro que o “ão” anasalado, com sua quase exclusiva sonoridade portuguesa, não poderia faltar na história. Tente fazer um gringo cantar “João Valentão é brigão, pra dar bofetão, não presta atenção...” e você vai perceber a dificuldade da coisa pra quem não cresceu familiarizado com este som. O vocábulo “saudade” também contribui para a diferenciação, porque embora exista sentimento semelhante em outras línguas, em nenhuma é tão cultuado e cantado. Para Hayward, “a língua portuguesa tem um vocabulário e uma atitude construída para celebrar essa ideia de saudade mais do que qualquer outra.”

Embora não seja um especialista da área, Mose Hayward arrisca pisar no terreno da linguística. Para ele, o português não é uma língua tonal, ou seja, “as variações de tom não geram mudança de significado nas palavras”. Isso deixa o compositor mais livre, certo de que mudanças de entonação não alterarão o significado da letra.
Será? Podemos encontra vários exemplos de palavras usadas em tom de ironia, na música brasileira. Noel Rosa já percebia isso, no início do século XX. Tente imaginar um Vicente Celestino, sério e compenetrado, cantando “baleiro, jornaleiro, motorneiro, condutor e passageiro, prestamista e vigarista, e o bonde que parece uma carroça, coisa nossa, muito nossa”. A intenção explícita de Noel é jocosa, ao mesmo tempo em que faz uma crítica ao ufanismo oco. Até “passageiro”, a descrição pode ser realista e até afetiva. A partir de prestamista, a mudança de tom é total. É curioso que muitos intérpretes não fazem essa diferenciação, cantando tudo do mesmo jeito. Desta forma, predomina o tom gaiato do samba, e é provável que o autor tenha desejado isso mesmo.

Hayward curte a palavra gostosa/gostoso. Para ele, esta é inequívoca, nunca é usada ironicamente na canção luso-brasileira. Podemos lhe atribuir vários significados, mas é sempre algo bom, desejável, desfrutável, saboroso, bonito ou sensual. Isso também é positivo na hora de construir as canções, de explicitar sentimentos. Quando falamos numa “bela bagunça”, isso pode ser dito (ou cantado) de duas formas: uma boa bagunça ou uma bagunça terrível, horrorosa, como o quarto de teu filho. Mas quando pensamos em “bagunça gostosa”, é impossível detectar um traço negativo. Já havia pensado nisso?


O autor conclui atribuindo certa responsabilidade ao contexto geográfico da língua portuguesa, com suas ramificações em três continentes (Europa, África e América do Sul), que se influenciam mutuamente. Tese recorrente, mas discutível. Afinal, o inglês é falado em praticamente todos os continentes, mas não se torna mais permeável por conta disso. Por outro lado, a contribuição da cultura negra é visível, tanto aqui quanto nos EUA. Talvez seja por isso que nas work songs dos negros nos algodoais do Mississipi as consoantes eram frequentemente engolidas, tornando as letras mais maleáveis...