Este é o nosso blog de
discussão das lusofonias.
Iniciamos a
discussão com uma frase de Machado de Assis:
"Língua
Portuguesa – é casta para os castos, como pode ser torpe para os
torpes"
'Os Lusíadas': a
obra que 'fundou' a língua portuguesa há 450 anos
Pintura da nau de Vasco da Gama, feita no
século 19 por Ernesto Casanova CRÉDITO,DOMÍNIO
"As armas e os
barões assinalados,/ Que da ocidental praia Lusitana,/ Por mares
nunca de antes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana,/ Em
perigos e guerras esforçados, / Mais do que prometia a força humana,
/ E entre gente remota edificaram/ Novo reino, que tanto
sublimaram."
Assim começa a obra que pode ser considerada a
certidão de nascimento da língua portuguesa. Publicada em 12 de
março de 1572, há 450 anos, a célebre criação do poeta Luís Vaz de
Camões (nascido provavelmente no ano de 1524 e morto provavelmente
em 1580) é formada por dez cantos, 1.102 estrofes e 8.816 versos,
todos em oitavas decassilábicas, sempre arranjados em um esquema
rímico fixo.
Trata-se do poema épico Os Lusíadas, que narra
a descoberta, pelo navegador português Vasco da Gama (1469-1524), da
rota marítima para a Índia — um marco nas relações comerciais e
exploratórias do século 15 e, de certa forma, a consolidação de um
momento historicamente relevante para Portugal.
Ao longo de seu texto, o poeta, que se dirige
ao rei Sebastião I (1554-1578), evoca episódios da história lusitana
de forma épica, sempre buscando glorificar o povo português.
Mas a grandeza de Os Lusíadas não se resume ao
engenhoso e esmerado formato adotado por Camões, nem pelo grande
número de versos, tampouco pelas próprias histórias de heroísmo ali
narradas.
Os Lusíadas se tornou um marco pelo uso da
língua portuguesa — na época chamada apenas de "linguagem", quase
como de modo pejorativo quando comparada ao jeito culto de se
expressar por escrito, ou seja, o latim.
E, protagonista e fruto de um momento histórico
de valorização de tais identidades, a obra é reconhecida como uma
espécie de literatura fundadora do idioma hoje oficialmente
praticado em Portugal e em outros oito países, inclusive o Brasil.
Doutor em estudos literários pela Universidade
Estadual Paulista (Unesp) e criador do canal no YouTube Elite da
Língua, o professor Emerson Calil Rossetti situa Os Lusíadas como "a
maioridade e a identidade poética da língua portuguesa".
"Constituem de fato uma referência para e sobre
a língua portuguesa. Não somente por ser uma obra-prima, o que é
hoje consensual, mas por ser a primeira produção do idioma que
alcança prestígio para além das fronteiras de Portugal ou dos países
lusófonos", argumenta ele.
"Camões captou com precisão o espírito da
Renascença, tomando como base as epopeias antigas e construindo seu
longo poema com soluções estéticas típicas da perfeição formal da
época mas a partir das possibilidades expressivas da nossa língua,
como jamais se havia visto", analisa Rossetti.
"É o caso, por exemplo, do ritmo bem marcado e
regular dos decassílabos heroicos e, num universo repleto de alusões
históricas, mitológicas e cristãs, as combinações de rimas que
caracterizarão, igualmente, as 1102 estrofes da epopeia."
Professora livre-docente da Universidade de São
Paulo (USP), onde é pesquisadora do Departamento de Letras Clássicas
e Vernáculas, a linguista Marcia Maria de Arruda Franco
contextualiza a obra como parte de um momento de "dignificação da
língua portuguesa como língua de cultura".
"Até o século 16, era muito raro que um autor
em Portugal escrevesse em português. E mesmo ao longo do século 16,
as línguas de cultura preferidas dos letrados, tanto os humanistas
puros que usavam o latim, como os impuros que usavam as línguas
vulgares, era o castelhano ou o latim em vez do português",
esclarece ela.
Franco lembra que esse movimento vinha sendo
experimentado por alguns escritores, como é o caso de Sá de Miranda
(nascido provavelmente em 1487 e morto em 1558), "que ousavam essa
aventura de descobrir o valor letrado da língua portuguesa, de
trabalhar sobre sua elocução, de escrever em português".
"Ao longo do século 16, vários vão levar a cabo
essa tarefa de escolher a língua portuguesa como língua de cultura.
Não só no discurso poético, mas também no discurso histórico. [O
idioma está presente] nos cronistas que escrevem sobre as grandes
descobertas, quando a língua portuguesa é a preferida", conta ela.
Vale ressaltar que já desde o reinado de Manuel
I (1469-1521), médicos portugueses eram obrigados a efetuar suas
prescrições em língua portuguesa. "Em 'linguagem', como eles diziam.
Naquela língua falada, que todo mundo entendia", comenta a
professora.
Era um período de ebulição acadêmica, na qual
os linguistas se propunham a entender e explicar a organização
daquilo que se falava. "Começa a surgir a filologia portuguesa, uma
série de gramáticas em defesa da língua portuguesa como língua de
cultura, e não mais apenas como 'linguagem'", contextualiza Franco.
"'Os Lusíadas' culminam esse processo, fazem com que esse processo
se consolide."
"Porque 'Os Lusíadas' são escritos em gênero
épico, sublime. Relaciona-se às épicas da cultura clássica
ocidental, da cultura antiga, que era modelizada pelos
renascentistas. 'Os Lusíadas' estão em linha direta com outras
épicas, de Homero [da Grécia Antiga] e de Virgilio [da Roma
Antiga]", diz a linguista.
Para o escritor Ênio César Moraes, professor de
língua portuguesa e assessor pedagógico do Colégio Presbiteriano
Mackenzie Brasília, a importância de Os Lusíadas pode ser dividida
entre os aspectos literário e histórico.
No primeiro quesito, o mérito recai sobre "o
fato de se tratar de uma epopeia, obra épica que, no plano
artístico-literária, põe Portugal ao lado de nações como Grécia e
Roma". Moraes observa que, não à toa, o próprio narrador do poema
"afirma, altaneiro": "Cessa tudo o que a Musa antiga canta/ Que
outro valor mais alto se alevanta". "[Está] enaltecendo a temática
da obra, em comparação às produções grega e romana", interpreta.
Já o segundo ponto está no fato de que o texto
de Camões é a "narrativa de grandes feitos do povo português, na
pessoa de Vasco da Gama, à época das grandes navegações".
"Virgílio [o poeta romano] é o grande
interlocutor de Camões. E com esse trabalho ['Os Lusíadas'], ele
engrandeceu o português e o consolidou como língua de cultura. Fez
isso graças ao seu trabalho de escrever com tropos, figuras,
imagens, um todo. Realizou um trabalho sobre a prosódia dos versos,
escolhendo os decassílabos, a oitava para urdir o seu poema, sua
épica… Trabalhou a elocução da língua portuguesa", complementa
Franco.
Shakespeare, Alighieri…
A obra garantiu a Camões o mesmo lugar na
língua portuguesa ocupado por William Shakespeare (1564-1616) no
inglês, Dante Alighieri (1265-1321) no italiano, François Rabelais
(1494-1553) no francês, e France Prešeren (1800-1849) no esloveno.
Em suma, cada língua considerada moderna tem no trabalho de um
grande escritor a consolidação de suas bases e a matriz de suas
normas.
"Camões representou esse movimento de defesa e
ilustração das línguas ditas vulgares, faladas no dia a dia. Que foi
geral na Europa, quando todas as línguas nacionais dos reinos
passaram a ser utilizadas também na língua de cultura, em detrimento
do latim", diz a linguista Franco.
"Em Portugal, havia a opção entre duas línguas
vulgares: o castelhano e o português. Mas cada vez mais os letrados
preferiram escrever em português", acrescenta ela.
Por que as pessoas ainda acreditam no mito
da alma gêmea
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Charles Dickens
Camões mesmo já havia escrito poemas em
espanhol. Decidiu utilizar o português para Os Lusíadas e, logo em
seguida, sua obra também foi traduzida — ainda no século 16, ganhou
três traduções para o castelhano e pelo menos uma publicação em
latim, conforme pesquisas de Franco.
"Do ponto de vista da história da evolução da
língua, o português atinge seu estágio moderno exatamente no século
16", ensina Rossetti. "É quando o idioma se uniformiza e adquire as
características básicas que ainda hoje se reconhecem nas nossas
gramáticas."
"A obra de Camões assimila essa nova feição e
legitima as potencialidades da nossa língua como expressão poética
de temas universais e aspectos atemporais acerca da condição humana.
Por meio dos recursos fônicos, morfológicos e sintáticos, o escritor
confirma o potencial também inventivo: a natureza literária do
idioma. Nesse sentido, a língua portuguesa torna-se, pela sua pena,
uma herança cultural, modelo de possibilidades de exploração
criativa", diz ainda o professor. "Por isso, Camões é patrimônio,
como também Shakespeare e Dante."
Rossetti lembra que a partir das letras de
Camões abriu-se um "espaço para outros gênios do pensamento
ocidental" em língua portuguesa. "É um novelo de muita linha, e a
primeira ponta desse fio se chama Camões", resume.
Professor Moraes ressalta que a época em que o
poeta viveu, o Renascimento, foi marcada por efervescência
científica e artístico-cultural. Assim, com Os Lusíadas, ele "deu
visibilidade ao povo português, ao ressaltar feitos grandiosos do
presente, as grandes navegações" e também garantiu "importante
referência para os estudos filológicos e linguísticos promovidos nos
séculos seguintes".
"Como sabemos, a língua é um dos principais
elementos de identidade nacional, e o excelso caráter nacionalista
da sua narrativa exalta, para além do conteúdo, a língua portuguesa.
Não é à toa que, até hoje, o poeta português figura como um dos
maiores nomes da literatura lusófona", pontua ele.
Apenas no vestibular?
Quatrocentos e cinquenta anos depois, por que
vale a pena ler Os Lusíadas ainda hoje? Para os especialistas, não
se trata apenas de uma obra "para o vestibular" — o livro pode e
deve ser lido como cultura geral, principalmente por pessoas
lusófonas.
"[Seus versos] são uma aula de retórica. Quem
quiser aprender retórica que leia 'Os Lusíadas', entenda toda aquela
estrutura persuasiva", defende Franco.
"Sua estrutura persuasiva, ele [o
poeta-narrador] quer convencer o rei [português] de alguma coisa,
convencê-lo a continuar essa aventura, essa luta dos portugueses
para manter seu império", explica a linguista.
"Bem, os clássicos são os clássicos. E isso
responderia à questão [sobre as razões para se ler Camões hoje] de
forma simplista mas eficiente", acrescenta Rossetti. "Para ser,
então, mais exato e pontual, diria que obras como 'Os Lusíadas' têm
a ver com a nossa história: a cultura, as crenças, as reflexões, os
valores, a memória."
Para o professor, "não se pode construir um
projeto futuro sem o conhecimento e a devida compreensão do passado,
sobretudo quando ele ainda faz tanto sentido nos dias de hoje".
"Afinal, continuamos seres desbravadores, vibramos com as conquistas
que ampliam os limites da geografia e do conhecimento, sentimos
emoção diante das histórias de amor ainda que com cores trágicas",
analisa.
Além disso, ele ressalta a questão da
lusofonia. "Principalmente, falamos a mesma língua e precisamos,
provavelmente mais que no século 16, de exemplos inteligentes,
admiráveis e sensíveis: necessitamos sempre de boa poesia, de
qualquer período, visto que os clássicos não envelhecem", conclui.
Moraes defende que "ter contato com os
clássicos" é fundamental para a "construção do repertório
artístico-cultural do indivíduo". "Nenhuma obra se torna um clássico
por mero trabalho de marketing", argumenta.
"No caso das epopeias, ainda mais", compara.
"Como se não bastasse a magnitude da forma, tem-se a maravilha do
conteúdo, que nos conduz 'por mares nunca dantes navegados'.
Ademais, propicia o estudo do passado histórico, sob a perspectiva
poética. Inclusive, pode proporcionar um interessante trabalho
comparativo entre os ofícios do historiador e do escritor-artista."
Problematizações contemporâneas também são
possíveis, é claro. E, se compreendidas dentro de cada contexto
histórico, podem gerar reflexões sem cair em anacronismos. Franco
frisa que não se pode esquecer que, em seu conteúdo, Os Lusíadas
"sublinham essa coisa que a gente considera horrível: a ideologia
imperialista, cruzadista".
"É um monumento ao poder e não deixa de ser um
pouco chocante para nossos ouvidos, por exemplo, o modo
preconceituoso como os mouros são apresentados na obra",
exemplifica. "Isso não é do poeta. É do gênero [épico] e é da época.
Por isso que a crítica contemporânea brasileira apresenta uma
leitura de 'Os Lusíadas' que salienta sua contradição, justamente o
elogio e o questionamento da posição invicta e hegemônica
portuguesa."
Por outro lado, também é importante ressaltar
que a obra é um retrato daquilo que pode ser considerada a primeira
globalização. "Essas 'descobertas' dos navegadores se tornaram
importantes como a primeira ligação planetária da Terra, a primeira
vez que todas as culturas entram em contato e se tem essa visão do
globo. Isso vai ser sempre importante", diz Franco.
"Podemos dizer que são questionáveis, já que no encontro de culturas
a diversidade acabou esquecida e apagada, reprimida pelo
eurocentrismo que doutrina o mundo… Mas 'Os Lusíadas' vão sempre ter
a importância de relatar esse primeiro contato entre culturas, ainda
que em confronto de poder entre o europeu hegemônico e os outros
povos subjugados.
A Lusofonia é
uma capela sistina inacabada; é comer vatapá e goiabada, um pastel
de bacalhau ou cachupa, regados com a timorense tuaka ao ritmo do
samba ou marrabenta; voltar a Goa com Paulo Varela Gomes, andar
descalço no Bilene com as Vozes anoitecidas de Mia Couto, ler No
país de Tchiloli da Olinda Beja, rever os musseques da Luuanda com
Luandino Vieira, curtir a morabeza cabo-verdiana ao som De boca a
barlavento de Corsino Fontes, ouvir patuá no Teatro D. Pedro IV na
obra de Henrique de Senna-Fernandes e na poesia de Camilo Pessanha;
saborear a bebinca timorense em plena Areia Branca ao som das
palavras de Francisco Borja da Costa e Fernando Sylvan, atravessar a
açoriana Atlântida com mil e um autores telúricos, reencontrar em
Salvador da Bahia a ginga africana, os sabores do mufete de
especiarias da Amazónia, aprender candomblé e venerar Iemanjá,
visitar as igrejas e casas coloridas de Ouro Preto, Olinda, Mariana,
Paraty, Diamantina, e sentir algo que não se explica em Malaca, nos
burghers do Sri Lanka, em Korlai ou no bairro dos Tugus em Jacarta.
É esta a nossa lusofonia. (Chrys Chrystello abril 2019)
Sobre o texto da
primeira página do blog recebemos do Sr. Manuel Miragaia o seguinte
comentário:
"Começo pelo final.
A grande maioria dos reintegracionistas querem hoje em dia que na
Galiza o galego se escreva como o português, mas conservando a
fonética galega e muito do rico vocabulário ou léxico galego.
Entendem que o galego, como o português do Brasil, uma variante da
mesma língua.
Só há uma parte muito pequena de reintegracionistas que se querem
aproximar ao português mas de jeito limitado, com ortografia não
totalmente idêntica, por exemplo, nos finais de palavra em ão, que
seria para eles om. Nação-naçom e também diferente em alguns verbos
do português. Estes reintegracionistas, próximos à direção da AGAL
repito, são uma minoria muito reduzida dentro do movimento
reintegracionista galego.
Também incluiria no texto o seguinte: O galego era a língua românica que nasceu no território ocupado pela
província romana de "Gallaecia" -a sua capital era a povoação de
Braga-, que abrangia o território da Galiza e o do Norte de
Portugal. Ninguém discute que no começo da Idade Média o galego era
a língua de todo o Noroeste da Península Ibérica. Ainda não se
falava do português.
Muitos filólogos galegos, portugueses, brasileiros e doutros países
consideram que ainda no presente o galego e o português são duas
variantes da mesma língua. Mesmo entre as pessoas mais qualificadas
que escrevem o galego com ortografia do castelhano a maioria pensa
que são a mesma língua.
Saudações cordiais,
Manuel Miragaia"
A importância e história da língua portuguesa.
O português faz parte das línguas românicas e é
derivado do latim, idioma originado na Itália e que se expandiu pela
Europa junto com o domínio do Império Romano.
Entre os séculos III e II a.C., o latim chegou ao
sul do continente europeu, onde hoje, se localizam Portugal e Espanha.
No século V d.C., quando o Império Romano caiu, a Península Ibérica já
estava latinizada e, portanto, o latim já era a língua falada pelos
povos que habitavam os países ibéricos.
A língua foi se transformando e, com a influências
dos povos bárbaros, que invadiram a região, surgiu o chamado
“galego-português”, que também é conhecido como “galaico-português”.
A separação do galego e do português ainda gera
polêmica entre os historiadores, que divergem em relação à data e aos
acontecimentos que levaram a isso. Já para os linguistas, esse momento é
mais claro, tendo sido iniciado em 1185, com a independência de
Portugal, efetivando-se anos mais tarde.
De acordo com Maria Cristina de Assis, autora do
livro “Histórias da Língua Portuguesa”, “a separação entre o galego e o
português, que começou com a independência de Portugal (1185), vem se
efetivar com a expulsão dos mouros em 1249 e com a derrota em 1385 dos
castelhanos que tentaram anexar o país. O galego foi absorvido pela
unidade castelhana e o português tornou-se a língua oficial nacional de
Portugal”.
Já Álvaro Iriarte Sanromán, diretor do Departamento
de Estudos Portugueses da Universidade do Minho, em Braga, defende o
mesmo que a Korn Traduções já comentou em alguns de seus textos: a
língua é dinâmica e, portanto, está em constante evolução. Por esse
motivo, ele considera mais importante entender que a língua é um
instrumento vivo, ao invés de definir um marco para a separação dos
idiomas.
Por fim, outro fato histórico que ajudou no
fortalecimento da língua portuguesa foi a expansão marítima de Portugal,
no século 15, fazendo com que o idioma fosse disseminado pelas suas
colônias e tendo, muitas vezes, o uso de outras línguas proibido.
Língua Portuguesa: uma das mais faladas no mundo
Hoje, a língua portuguesa é a sétima mais falada do
mundo, sendo o idioma nativo de nove países e tendo o Brasil com o maior
número de falantes (208,8 milhões). Além disso, apenas Brasil, Portugal
e São Tomé e Príncipe tem o português como única língua oficial.
'Não se pode dizer que o português evoluiu do
galego, ou vice-versa. Houve, sim, uma fase arcaica, durante a Idade
Média, denominada galego-português, que vinha a ser o idioma falado nas
duas margens do Minho. Com a nossa independência, o galego propriamente
dito passou a girar na órbita política e linguística do castelhano,
enquanto o português se foi diferenciando, sobretudo devido à influência
do moçárabe, desenvolvido no centro e, sobretudo, no Sul do País.
Os Celtas não eram aparentados com os Vascos ou
Bascos, mas os Lusitanos, os nossos antepassados mais conhecidos, eram,
de facto, celtas (ou melhor, celtiberos) e deviam falar uma língua da
família céltica, muito aparentada com a itálica, a que pertencia o
latim, trazido para a Península pelos Romanos (soldados, funcionários e
colonos), na sua forma vulgar.
Há estudos sobre toponímia galego-portuguesa,
designadamente Os Nomes Germânicos na Toponímia Portuguesa, de Joseph
Piel. Alguns escritores romanos referiam-se à língua falada pelos
Lusitanos, mas sempre sem entrar em pormenores. '
Na ponta da língua: o que é lusofonia?
Etimologia e interpretações críticas
A cada pergunta, no mínimo duas respostas há: aquela breve, enxuta,
outra mais ampla e, às vezes, divagante. No que diz respeito à
resposta curta, a palavra “lusofonia” explica a si mesma. Trata-se
de justaposição das entradas “luso”, que do latim quer dizer
“relativo a lusitano”, e “fonia”, essa já vinda do grego,
equivalente a “língua”. Trocando em miúdos, lusofonia pode ser
entendida como “qualidade daqueles que falam a língua dos lusíadas”,
lusos ou portugueses.
Se a pulga atrás da orelha pulou, fica o rodapé: Lusitânia foi o
nome atribuído a uma província ibérica, correspondente hoje à parte
da Espanha e de Portugal.
Assim como a palavra “lusíadas”, Lusitânia vem de “Lusus”, figura
legendária ligada a Baco e creditada como fundadora mitológica da
região.
Desse literal boca-a-boca etimológico, viria inclusive o título da
magistral obra de poesia épica escrita por Camões nos idos dos
séculos XVI, “Os Lusíadas”... percebem como já passamos à segunda
forma de responder uma pergunta, aquela mais ampla e que incorre na
possibilidade da perda do fio da meada? Façamos, então, neste espaço
curto, alguns sobrevoos que poderiam ser longos.
A lusofonia, celebrada ao 5 de maio, é também entendida como uma
comunidade de 9 países espalhados no globo cuja língua materna,
administrativa ou secundária é o português. Essa população esparsa
de cerca de 280 milhões de pessoas tem corpo institucional na
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, fundada em 1996 com o
objetivo de aproximar os estados-membros por meio da cooperação
financeira e cultural. Por sinal, sabia que a mencionada CPLP
promove uma espécie de Jogos Olímpicos dos falantes de português, os
Jogos da Lusofonia? Se não, calma, assim como ocorreu ao passar a
saber quem foi Lusus, pouca coisa vai mudar em sua vida.
O que talvez mude, ou incomode pelo menos, é a interpretação de
intelectuais, como Adriano Freixo, quem defende que, salvo para
Portugal, a CPLP seria desprovida de sentido para os seus membros.
Para ele, a instituição teria sido originada nos interesses
específicos portugueses, com a busca de reinserção internacional no
cenário de pós-Guerra Fria por meio da aproximação às ex-colônias.
Na mesma linha crítica, o português Boaventura de Sousa Santos
aponta que a CPLP está demasiadamente focada em Brasil e Portugal.
Nem tudo são flores ou mera etimologia, não é?
Atalhando o escrito: afinal, o que é Lusofonia? Bem, mais do que
conceitos aqui entregues, lusofonia parece não ser nem a resposta
curta, nem aquela mais longa, embora permeie ambas. Ao meu lusófono,
parcial e amador ver, lusofonia parece ser uma “vivência”, ou
experiência, que articula tacitamente distintas visões de mundo sob
um mesmo nome que não comporta todas suas particularidades. Falar em
“trama de diferenças”, como afirmou Laura Padilha, ou mesmo em
“lusofonias”, aparenta ser o mais acertado; isso já é, porém, o
pontapé para uma discussão ampla.
GABRIEL FERNANDINO | MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA (UFMG) E BACHAREL EM
RELAÇÕES INTERNACIONAIS (PUC MINAS)
Era um mundo novo / Um sonho de poetas / Ir até ao fim / Cantar
novas vitórias /E erguer, orgulhosos, bandeiras / Viver aventuras
guerreiras / Foram mil epopeias / Vidas tão cheias /Foram oceanos de
amor / Já fui ao Brasil / Praia e Bissau / Angola, Moçambique / Goa
e Macau / Ai, fui até Timor/ Já fui um conquistador / Era todo um
povo / Guiado pelos céus /Espalhou-se pelo mundo /Seguindo os seus
heróis / E levaram a luz da tortura/ Semearam laços de ternura Foram
dias e dias e meses e anos no mar / Percorrendo uma estrada de
estrelas a conquistar Da Vinci, na Eurovisão, 1989
A África é algo mais do que uma terra a ser explorada; a África é
para nós uma justificação moral e uma razão de ser como potência.
Sem ela seríamos uma pequena nação; com ela somos um grande Estado. Marcelo Caetano, 1935
No meio das convulsões presentes, nós apresentamo-nos como uma
comunidade de povos, cimentada por séculos de vida pacífica e
compreensão cristã, irmandade de povos que, sejam quais forem as
suas diferenciações, se auxiliam, se cultivam e se elevam,
orgulhosos do mesmo nome e qualidade de portugueses. Salazar, 1933
“É uma ponte que se
constrói, uma ponte que une as margens distintas das identidades
culturais de cada um dos países de língua oficial portuguesa, uma
ponte que pretendemos inscrever no nosso imaginário colectivo, num
encontro cultural único, que amplie o nosso olhar sobre os outros e
sobre nós próprios, fortalecendo indelevelmente os laços que nos
unem e a nossa forma de estar no mundo.” Jorge Couto, ex-presidente do Instituto Camões, a propósito de uma
publicação durante a Expo 98.
A lusofonia poderá ser o conjunto de identidades culturais
existentes em países, regiões, estados ou cidades em que as
populações falam predominantemente língua portuguesa: Angola,
Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e
Príncipe, Macau, Timor-Leste e diversas pessoas e comunidades em
todo o mundo. Haverá entre estes países lusófonos relações
privilegiadas - na cooperação política e económica (situação
prodigiosa de unir as duas margens do Atlântico), na educação e nas
artes – grandes criadores que manejam a língua de forma criativa,
inventam outras pátrias de Camões, contribuindo com a sua obra para
ampliar a interculturalidade lusófona: Pepetela, José Craveirinha,
Saramago, Jorge Amado, Luandino Vieira e tantos outros. Essa delimitação imaginária será geográfica, de poder, de
identidade, de descrição comum, mas é, antes de mais, um projecto,
uma construção artificial, como são todas as fronteiras, nações e
conjuntos de nações3.
Neste espaço, que se convencionou chamar de ‘lusófono’, partilha-se
a mesma língua nas suas várias recriações. É certo e fantástico:
viaja-se numa floresta tropical, no rio do Amazonas, nas montanhas
de Díli, numa estrada da Huíla e podemos conversar em português,
vamos a um café em Bissau ou uma esplanada em Cabo Verde e gozamos o
momento de ler o jornal na nossa língua (ainda que nem sempre em
português nos entendemos, pois para muitos a língua oficial é uma
língua estrangeira que cumpre apenas funções administrativas).
Que identidades culturais partilham estes países para além da
especificidade da língua (que já é muito) e do destino de emigração
ser a antiga metrópole? Porque têm de ser tomados em conjunto, como
um pacote de países, estas diferentes culturas a quem aconteceu
terem sido esquartejadas em países colonizados pelo mesmo poder
central? E de que se trata quando se pretende fortalecer a “nossa
forma de estar no mundo”? Que olhar é esse nosso olhar? Quem é este
nós? À partida um ‘nós’ é feito de coisas muito diversas e, se
referido ao português, devia ser o oposto de um motivo de orgulho.
A lusofonia depende da “narração de uma certa história da
colonização portuguesa, que justifica um certo presente” (como
referiu António Tomás, explicando como era necessário contar
histórias alternativas, por exemplo a de Amílcar Cabral4), pois se o
presente se faz da reaplicação de narrativas fundadoras, quase todas
aleatórias e/ou construídas, e de interpretações da história, se as
histórias forem outras o presente implicitamente o será. Mas até
agora o que existe são estes discursos ancestrais que passaram, com
uma nova maquilhagem, a ser ‘senso-comum’. A lusofonia, apesar de
actualizar o passado colonial e protelar o imaginário imperial, não
é incomodativa porque se revestiu de um discurso arejado, menos
chato do que a celebração dos descobrimentos, ainda que dela se
alimente.5 E a retórica da interculturalidade - como a Expo 98, o
Ano Europeu do Diálogo Intercultural em 2008 e outras efemérides -
dá-nos a sensação de estarmos num espaço que se pretende
politicamente correcto e preocupado com as questões fundamentais
aliás de como viver com o Outro. Porém, tal discurso contém os seus
perigos quando “manifesta um desejo utópico de retratar a história e
as relações entre diferentes comunidades ao nível global, como sendo
uma relação sem poder, sem conflito.” (Vale de Almeida, 1998: 237)
Ou seja, tende a elidir o processo marcado pelo conflito e pelas
relações de poder, retrabalha o passado de forma celebratória e não
problematizante.
Precisamos pois de perceber melhor o que está por detrás de todos
estes discursos - produzidos de acordo com as políticas e ideologias
mais viáveis - no sentido de “evitar a recepção acrítica de
tendências particulares, evitando assim que estas sejam
apressadamente generalizadas ou universalizadas” (Sanches, 2007:
10), e no interesse de pensar mais pelas dúvidas do que pelas
certezas vinculadas na narrativa da História. Refiro-me à lusofonia (discurso oficial e práticas) no enfoque da
relação Portugal / países africanos de língua portuguesa. O caso do
Brasil (na sua dimensão continental) ou terras asiáticas são
fenómenos diferentes embora enquadrados na mesma lógica.
Promoção de lusofonia
Apesar do discurso aparentemente empenhado da lusofonia, na
realidade não existe verdadeiramente uma consciência lusófona, não
há lóbi lusófono na ONU ou na OMC (pelo menos se compararmos com a
francofonia), nem tem assim tanta coesão, nem no plano económico nem
político. Nem em termos de identidade: quase nenhum africano ou
brasileiro se afirma enquanto ‘lusófono’ (só ouço portugueses
falarem disso).
O que une os “lusófonos” afinal hoje em dia, que ‘potencial’ é este
para o qual devemos encontrar uma estratégia de consolidação? Será
então a partilha de cultura: conhecimento das histórias e
literaturas uns dos outros, gostos culinários, musicais, o futebol?
Se assim for, a dúvida persiste no que toca à estratégia dos
promotores da lusofonia, uma vez que o desinteresse é a tónica
dominante nas várias áreas de expressão. Como questionava Kalaf numa
crónica do Público: “Será que nos interessamos realmente pela
lusofonia? Ou este é um conceito que serve tão-só a maquinação
mediática? O Brasil, aparentemente, pouco se importa com a
actualização deste luso-qualquer-coisa e Angola está a seguir o
mesmo caminho.”
Este desinteresse provirá talvez do facto das práticas também
remontarem ao passado. Os agentes de promoção da lusofonia ainda
funcionam como centro cultural na ‘metrópole’ que subsidia os vários
representantes no terreno sem qualquer noção das realidades desses
países, sem estratégia conjunta de programação, etc. O espaço
lusófono acaba por ser a tal “bolha onde tudo é possível e tudo se
consome”, retomando a ideia de Lívia Apa, “um mundo criado pelo
‘laço’ da língua portuguesa, dentro do qual os escritores transitam,
se movem, trocam visitas, falam, escrevem, são lidos, mas fora do
qual eles próprios não conseguem encontrar o seu lugar, como se
fossem até incapazes de ter acesso ao que acontece fora da
lusofonia.
Por exemplo, os escritores africanos lêem pouco os outros africanos
não lusófonos.”8
O fechamento para outros espaços como reflexão cria essa bolha de
protecção nas rédeas de um circuito fechado e alienante. O facto da
produção literária passar pelo mercado português para ser legitimada
(o cânone produzido de forma exógena), e nessa obrigação ter como
porta de acesso o ‘exótico’, a única permitida pois o mercado sabe
bem fazer rentabilizar a ‘diferença’, por vezes condiciona a própria
forma de escrever (como se se escrevesse para português ler),
praticando uma tradução cultural de si-mesmos. Os escritores
africanos pouco lidos nos seus países de origem são-no mais na
Europa, onde há mais leitores, e também aqui pode pôr-se a hipótese,
como avançou Inocência Mata, de uma reedição da política do
assimilacionismo cultural e de continuidade do império na cultura.
(Mata, 2007: 288)
A língua portuguesa era o suporte do Império e hoje é o suporte da
lusofonia no que concede de possibilidade de universalismo. Para
reforçar esta partilha há que promove-la, o que não tem mal nenhum
se não se partisse do princípio de que cabe aos portugueses o
controlo da língua portuguesa. Desta forma, escreve Alfredo
Margarido (2007), “a língua deixaria de ser um instrumento capaz de
ser utilizado por qualquer grupo ou mesmo indivíduo, pois seria não
só a criação mas sobretudo propriedade dos portugueses. Se partirmos
do princípio que a língua pertence àqueles que a falam, regista-se
uma profunda autonomia dos locutores de português. Se esperamos que
a língua continue a expandir-se, devemos em contrapartida refrear o
instinto de dominação que continua a marcar a sociedade portuguesa.”
Veremos agora em relação ao novo acordo ortográfico o que vai mudar
neste capítulo, bem presente nas vozes mais conservadoras deste
debate.
É como se a língua, o património dos falantes de português, fosse o
último território que ficou por descolonizar, como sugeriu o
escritor timorense Luís Cardoso no colóquio acima referido.
Mas só que quem está a dar cartas desta vez, num processo autofágico
de pegar na norma e subvertê-la, ao contrário do colonialismo
linguístico pretendido, são outros: “reinventamos o português, os
tugas a aprenderem connosco, somos colonos desta vez” rapa o
angolano Kheita Mayanda no tema “É dreda ser angolano”. E é
equacionando estas variantes todas do português, com muitos mais
falantes e criatividade, sem sobreposição da norma do suposto
‘centro’ da língua, que a língua portuguesa se enriquece.
A música poderia ser a excepção, onde o discurso do “espaço
lusófono” faria algum sentido uma vez que, desde o séc. XV, tem sido
um elemento de fortes trocas culturais percebendo-se a saudável
contaminação dos ritmos e conhecimento das origens da música nos
vários países de língua portuguesa. Exemplos: o fado que é da
família do lundum e da morna; a curiosidade dos cantautores de
intervenção portugueses pelas sonoridades da música africana e
brasileira; a partir dos anos 90, a alavanca de projectos como Rap
Mania ou Kussondolola (que fez a ponte com África na cultura jovem)
e, hoje em dia, inúmeras bandas de fusão. A música que circula na
cultura urbana recupera o semba, mornas, e apresenta imensos pontos
de contacto entre as várias culturas.
Apesar da lusofonia musical ser uma realidade constatada, mais uma
vez o próprio projecto lusófono se desintegra na prática. As
produtoras portuguesas andam a dormir. No filme Lusofonia, Sons da
(R)evolução os músicos e agentes musicais lamentam a falta de
investimento nacional e terem de recorrer a editoras não portuguesas
(sobretudo francesas e holandesas, no caso das cantoras Lura,
Cesária Évora, Sara Tavares, Mariza) com melhores condições, da
gravação à promoção passando pelos prémios. As editoras portuguesas
estão desatentas à fonte inesgotável de boa música da noite
afro-lisboeta, não acreditam e não cuidam do seu ‘património
linguístico’ - a música em língua portuguesa ou crioulo em muitos
casos - como mercado de confluência de culturas. Por complexos,
falta de visão? De vez em quando descobrem incríveis fenómenos como
o kuduro progressivo, caso dos Buraka Som Sistema. Mas mesmo assim,
o kuduro, sobretudo o original e dos guetos, é subaproveitado no seu
potencial: “se fosse de Berlim, Nova Iorque ou Londres o kuduro era
uma música do mundo” diz, no mesmo filme, o crítico Vítor Belanciano.
Nas artes plásticas parece que a maioria das abordagens vão de
encontro a um espírito que cristalizou uma ideia de arte africana,
tradicional e ao gosto dos africanistas. Ou para satisfazer um
mercado ávido de naif e novos primitivismos, bastante condescendente
e que sobrevaloriza os contextos dos artistas em relação à sua arte.
De vez em quando há iniciativas que reflectem uma visão
contemporânea e introduzem uma série de questões ligadas às teorias
pós-coloniais, mas colocam sempre o enfoque na tal devolução da
imagem de um centro: os vestígios dos portugueses em África, ou como
os africanos vêem os portugueses cá, ou os descendentes de
colonizados descobrem as suas origens, etc. Outros eventos passam à
margem da aglomeração lusófona (e do próprio meio artístico
português).
Estes exemplos de má promoção da lusofonia acabam por convergir na
ideia de que não se tem investido a sério neste espaço, cuja
sustentação não é desinteressada. Os laços criados entre as culturas
destes países existem naturalmente nas histórias de vida, a maioria
delas empurradas pela realidade anterior de criação de colónias, que
leva agora a que se emigre para o sítio de onde esses que as
povoaram partiram (e outros, no fluxo contrário, partem à procura do
el dourado do investimento em África), ou por questões de guerra,
economias desmembradas, desemprego, estudo, desamor, ou mil razões
que fazem as pessoas circular para realidades nem sempre
acolhedoras, mas que proporcionam a recriação da sua identidade. A herança da história trágico-marítima foi transformada em discursos
sobre ‘pontes’ e laços culturais, depois de uma vez se terem criado
pontes aéreas para fugir da insustentabilidade de uma situação
ideológica que eram as colónias. E toda essa partilha que se
pretende efectiva actualmente, é também ela ideologicamente
questionável, com interesses e práticas que insistem nos mesmos
termos e dados do jogo. É preciso auto-reflexividade para estancar a reprodução dos mitos do
antigamente.
Questionar as bases deste modelo e defesa da lusofonia poderá ser um
princípio para uma mudança de paradigma: interessa lidar com
subjectividades e particularidades, contextualizando de onde vêm
estas relações, e não com abstractos conjuntos de países que, além
da língua e de episódios históricos, não se revêem necessariamente
nesse bonito retrato de família que Portugal quer passar e do qual
faz uso sempre que lhe convém.
Publicado na revista Jogos
Sem Fronteiras, edições
Antipáticas, Julho 2008
O Movimento Internacional de
Divulgação e Promoção da Lusofonia não tem dono.
Se é verdade que a Língua
Portuguesa não tem dono e se democracia é composta por maiorias, a
Lusofonia e o Movimento Internacional Lusófono deveria dar mais voz ao Brasil. O Brasil é o País que tem mais falantes da Língua
Portuguesa no mundo e o único no Continente Americano de Língua
Portuguesa. Continente dominado pelo Espanhol.
Filipe de Sousa
Lusofonia: uma mera concepção
doutrinária
Tive a oportunidade de ler atentamente o texto de opinião do
escritor José Luís Mendonça, em defesa do conceito de “lusofonia”,
com o qual ele aparentemente concorda e com o qual eu discordo, pelo
simples facto do mesmo se situar no âmbito doutrinário e não
sociológico. José Luís Mendonça, ao citar a definição de lusofonia no Dicionário
de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de
Lisboa, refere-se simplesmente ao ponto 2: “Comunidade formada pelos
países e povos que têm o português como língua materna ou oficial.
Difusão da língua portuguesa no mundo.” Mas omite, propositadamente,
o ponto 1: “Qualidade de ser português, de falar português; o que é
próprio da língua e cultura portuguesas.” Porque o fez?
Também poderia ter apresentado outras definições, a título de
exemplo, que já constaram da Wikipédia “enciclopédia livre”: como
sinónimo de “portuguesofonia” e entendida como “o conjunto de
identidades culturais existentes em países, regiões, Estados ou
cidades falantes da língua portuguesa, como Angola, Brasil, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e
Príncipe, Timor-Leste e por diversas pessoas e comunidades em todo o
mundo”. Mais tarde, esta definição foi retirada da Wikipédia e
surgiu uma outra: “conjunto de algumas identidades culturais
existentes em países, regiões, Estados ou cidades falantes da língua
portuguesa como Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau,
Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Goa e por
diversas pessoas e comunidades em todo o mundo” [em 15/09/2014].
Na realidade, o termo “lusofonia” parece ter surgido apenas no
período pós-colonial, já que o Dicionário Prático Ilustrado, editado
em 1977, pela Lello & Irmão Editores, com 2.026 páginas e mais de
100.000 vocábulos, à época, auto-intitulado de Novo Dicionário
Enciclopédico Luso-Brasileiro, é totalmente omisso em relação à
palavra “Lusofonia”, mas refere-se à palavra “luso” como sendo: o
“nome do suposto fundador da raça lusitânica”; sinónimo de
“Português”, de “Lusíada” e de “Lusitano”.
Se antes chegou a admitir-se o termo “portuguesofonia”, porque não
“Palopofonia” como neologismo, se as vertentes de identidade são de
origem cultural, histórica e política? Estas vertentes estão mais
próximas dos PALOP do que do Brasil, Portugal, Goa, Macau e Timor
Leste, pelas seguintes razões: Há uma mesma pertença identitária
africana (e até civilizacional bantu, como no caso de Angola e
Moçambique); Há a mesma submissão colonial de meio milénio, com
contacto permanente de cinco séculos com a língua e a cultura
portuguesa; Há diferentes formas de reivindicação protonacionalista
e associativista que evoluíram para a moderna construção do
nacionalismo nos PALOP; Com excepção dos países arquipelágicos (Cabo
Verde e S. Tomé e Príncipe), há a guerra como factor dissociativo e
associativo.
Como diria a historiadora angolana Maria da Conceição Neto, pelo
menos os angolanos e os moçambicanos, enquanto africanos, antes de
eventualmente se considerarem “lusófonos”, são, maioritariamente e
em primeira instância, “bantuófonos”.
Maria Manuel Baptista, numa comunicação apresentada no III Seminário
Internacional “Lusografias”, promovido pelo Centro de Investigação e
Desenvolvimento em Ciências Sociais e Humanas da Universidade de
Évora, que decorreu de 8 a 11 de Novembro de 2000, logo no início da
sua intervenção, referiu o seguinte: “A presente comunicação parte
da ideia de que o conceito de Lusofonia é um bom conceito para
abandonar, pois é um termo que imagina designar e conter em si um
espaço linguístico-cultural que teria desde logo como centro os
‘lusos’ ou os ‘lusíadas’, apesar de o discurso oficial, de
intelectuais e políticos dos mais diversos quadrantes e formações,
ser incapaz de assumir claramente, e sem hipocrisia, a não inocência
de um tal conceito”. Maria Manuel Baptista sustenta esta afirmação
com uma citação do professor e filósofo português Eduardo Lourenço,
que, em 1999, no seu livro – «Cultura e Lusofonia ou os Três Anéis –
A Nau de Ícaro, seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia», afirmou
perentoriamente: “Não sejamos hipócritas, nem sobretudo
voluntariamente cegos: o sonho de uma Comunidade de Povos de Língua
Portuguesa, bem ou mal sonhado, é por natureza – que é sobretudo
história e mitologia – um sonho de raiz, de estrutura, de intenção e
amplitude lusíada”. E acrescenta que a questão da “Lusofonia” tal
como a Francofonia, só pode ser adequadamente esclarecida num
contexto mais vasto “que é o da nossa actual cultura mundializada, a
braços com a, porventura, mais profunda crise que o pensamento
ocidental já viveu, situação cultural e espiritual que tem sido
comumente designada por pós-modernismo, pós-humanismo,
pós-cristianismo ou pós-colonialismo”. De entre os intelectuais portugueses que têm procurado um sentido,
simultaneamente retrospectivo e prospectivo, para a “lusofonia”,
destaca-se, de facto, Eduardo Lourenço, “um europeísta convicto, ora
crítico e desiludido, ora utópico e entusiasta”, mas, face à
“lusofonia” são claras e reiteradamente assumidas as suas posições,
nos diversos textos que tem publicado sobre esta matéria.
Lamentavelmente, pouco divulgados.
Por agora, fico a imaginar um “mucubal” no seu percurso comunitário
de transumância ou uma “mumuíla” nas ruas da serra da Chela a vender
óleo de “mumpeke” e “ngundi” para vitaminar o cabelo e alguém, por
imperativos doutrinários, dizer-lhes que são “lusófonos” (?!).
“A Venezuela é um país com
muito potencial no que se refere ao ensino da Língua Portuguesa” Rainer Sousa, coordenador na Venezuela
A promoção e difusão da Língua e Cultura portuguesas é o grande
objetivo da Coordenação do EPE (Ensino Português no Estrangeiro) na
Venezuela. Um país onde a maioria dos estudantes de Português ainda
são luso-descendentes, mas onde se tem notado “cada vez mais” o
interesse em estudar esta língua por parte de venezuelanos sem
nenhum vínculo com a comunidade portuguesa. Para que este interesse
permaneça e cresça, é necessário, entre outras metas, formar mais
professores, como sublinha Rainer Sousa.
Na Venezuela, o Português é dinamizado no regime de ‘ensino
paralelo’, oferecido de forma extracurricular. “Ainda estamos a dar
os primeiros passos na introdução do Português de maneira oficial
nas escolas venezuelanas”, afirma Rainer Sousa. Há 22 instituições
que oferecem cursos de Português, duas das quais começaram este ano
organizá-los.
E se os alunos ainda são, maioritariamente, luso-descendentes, a
Língua Portuguesa tem, a cada ano que passa, despertado o interesse
de venenzuelanos sem nenhum vínculo familiar a Portugal.
Conceitos Lingüísticos, Colonização
Lingüística
Os efeitos ideológicos de um processo colonizador materializam-se em
consonância com um processo de colonização lingüística, que supõe a
imposição de idéias lingüísticas vigentes na metrópole e um ideário
colonizador enlaçando língua e nação em um projeto único. A colonização lingüística é da ordem de um acontecimento, produz
modificações em sistemas lingüísticos que vinham se constituindo em
separado e, ainda, provoca reorganizações no funcionamento
lingüístico das línguas bem como rupturas em processos semânticos
estabilizados. Colonização lingüística resulta de um processo
histórico de encontro entre pelo menos dois imaginários lingüísticos
constituivos de povos culturamente distintos − línguas com memórias,
histórias e políticas de sentidos desiguais −, em condições de
produção tais que uma dessas línguas − chamada de língua
colonizadora − visa impor-se sobre a(s) outra(s), colonizada(s).
Os efeitos decorrentes desse processo de colonização lingüística,
porém, não são sempre os mesmos nem não são previsíveis; basta que
se observem comparativamente as trajetórias das diferentes línguas
indígenas, das línguas africanas e de línguas colonizadoras como o
português, o inglês, o francês e o espanhol nas Américas.
Se, de um lado, há um encontro da língua de colonização com outras (européias,
indígenas ou africanas), de outro, há um lento ‘desencontro’ dessa
língua colonizadora com ela mesma. Assim, a colonização lingüística
também pode ser apreendida como um acontecimento lingüístico
bastante específico: um (des)encontro lingüístico no qual os
sentidos construídos são singularizados em situações enunciativas
singulares, situações histórica e paulatinamente engendradas que vão
dando lugar ao surgimento de uma língua e de um sujeito singulares.
Em termos sintéticos, a colonização lingüística do Brasil pode
ser apresentada conforme os pontos enumerados abaixo:
1) Os colonizadores e administradores falam e escrevem sobre as
línguas desde os primeiros momentos do contato. Esse conjunto de
dizeres sobre as outras línguas vai instituindo um lugar para elas.
É um lugar organizado a partir de um domínio de saber lingüístico,
alimentado por um imaginário já pré-constituído, ao mesmo tempo em
que passa a fomentar o saber sobre as línguas e a circulação de
outros sentidos não previstos. Talvez aqui se encontre um dos
aspectos de maior exclusão presente na colonização lingüística, pois
frente à construção desses dizeres não há um “direito lingüístico de
resposta”: os índios não podem nem contestar a interpretação
portuguesa, uma vez que não sabem o que está sendo dito sobre eles,
nem têm como deixar na memória sua interpretação sobre esse
desconhecido português, já que sua língua não tem escrita.
2) Faz parte da colonização lingüística um estudo das línguas
desconhecidas como forma de dar sustentação às idéias lingüísticas
vigentes. No caso português, a colonização lingüística no século XVI
sustenta ideologicamente o próprio ato da expansão marítima e
religiosa. É, por exemplo, de Fernão de Oliveira um dos enunciados
que fundam e fundem as políticas expansionistas e
lingüístico-religiosas: “...melhor é que ensinemos a Guiné que
sejamos ensinados de Roma.” (Oliveira,1975). Ou ainda, como afirma
João de Barros seguindo essa direção: “... per esta nossa arte
aprenderem a nossa linguagem com que possam ser doutrinados em os
preceitos da nossa fé, que nella vam escritos.” (Barros,1971). Esses
enunciados, retomados parafrasticamente ao longo do processo
colonizador pela legislação colonial, reaparecem no século XVIII no
Diretório dos Índios promulgado por Pombal como forma de reafirmação
dos sentidos já estabelecidos e também como forma de oficializar em
definitivo a língua como uma das instituições nacionais portuguesas
na colônia: “Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas
as nações (...) introduzir logo nos povos conquistados seu próprio
idioma...”
3) Tão importante quanto a imposição da língua de colonização é o
aprendizado das línguas desconhecidas. Na colonização brasileira,
esse aprendizado ou se realizou oralmente ou em função da
gramatização, como decorrência das formas como ia se dando o
contato: inicialmente, os línguas, e depois os colonos e os
bandeirantes, por exemplo, aprendiam oralmente; já com os
religiosos, tanto ocorre uma oralização quanto ocorre um
ensino-aprendizado a partir das gramáticas e vocabulários que vão
sendo escritos. 3.1) Para os colonos, o aprendizado da(s) língua(s) desconhecida(s)
faz parte de um processo de conhecimento e de dominação da terra,
como foi, por exemplo, a situação dos bandeirantes. 3.2) Para os religiosos, aprender a língua é uma forma de apreender
a cosmologia indígena, e, assim, melhor traçar os caminhos mais
adequados para uma conversão dos sentidos indígenas em católicos. A
gramatização permite a construção de uma escrita, possibilitando a
tradução e a conversão lingüístico-cultural de orações e outros
rituais sagrados, como o batismo e as confissões. Esse processo
permite, inclusive, o ensino da língua geral na metrópole, levando à
produção de um efeito não previsto: uma outra língua passa a
integrar materialmente o espaço da língua de colonização. Aprende-se
uma língua imaginária, aprisionada nas redes de um modelo gramatical
latino, e, ao mesmo tempo, apreende-se um imaginário sobre as
línguas e sobre a colônia.
4) Nesse processo de aprendizado, há um estabelecimento de
denominações para a flora, fauna e geografia da terra desconhecida,
ou seja, organiza-se uma taxionomia semântica a partir da
representação lingüística feita para os termos indígenas, misturados
a termos provenientes do colonizador. As denominações, pensadas aqui
em termos da construção discursiva dos referentes, vão tornando
transparente a opacidade constitutiva do que é desconhecido, ou
seja, engendram sítios de significância codificados em termos do
domínio de pensamento do colonizador. (V. Orlandi,2002,p 29)
Nessa ótica, são elas que
ficam nas gramáticas portuguesas como vestígio possível da presença
do que havia sido excluído. Assim, sob o rótulo “provincialismos” ou
“termos da língua geral do Brasil”, a língua colonizada tem seu
lugar demarcado como uma diferença tolerável e já absorvida.
5) Paralelamente, apesar da forte presença sobretudo da língua
geral, organiza-se a imposição da língua de colonização de forma a
atingir, visando à difusão do português como língua e cultura da
metrópole, um monolingüismo idealizado. Cidades, portos e fortes são
locais de administração e legitimação dessa ambiência
lingüístico-cultural predominantemente portuguesa. Nos portos e nos
fortes, é na modalidade escrita da língua portuguesa que se faz o
registro de entrada e saída de mercadorias, por mais que haja a
pressão de diferentes línguas em circulação. Nas cidades, o latim e
o português são ensinados em sua forma escrita e ocupam outros
espaços institucionalizados da metrópole: escolas, tribunais e
igrejas. Ensina-se o português fixado pela gramática, que assegurou
a Portugal sua unidade e identidade como nação, de forma a garantir
na colônia a reprodução desse imaginário. Embora nos termos dessa
descrição gramatical voltada para o ensino e a escrita, haja a
fixação da imagem do português como língua una e homogênea,
garantindo uma estabilidade lingüística necessária ao seu ensino
longe da metrópole, sua historização na colônia não fica imune ao
contato com as demais histórias e culturas.
6) Finalmente, a colonização lingüística supõe o estabelecimento de
políticas lingüísticas explícitas como caminho para manter e impor a
comunicação com base na língua de colonização. Delimitando os
espaços e as funções de cada língua, a política lingüística dá
visibilidade à já pressuposta hierarquização lingüística e, como
decorrência dessa organização hierárquica entre as línguas e os
sujeitos que as empregam, seleciona quem tem direito à voz e quem
deve ser silenciado. A formulação e execução de uma dada política
lingüística, no entanto, não impede totalmente a circulação e o
amalgamento das línguas e dos sentidos.
Apesar da força engendrada pela colonização lingüística, não há
ritual sem falhas, e a comunicação supõe, também, a não comunicação,
como nos lembra Michel Pêcheux. (Pêcheux,1988). Assim sendo, à
revelia da colonização lingüística oficialmente imposta, pequenos
lugares de esgarçamento nessa ideologia de dominação pela língua da
metrópole vão sendo constituídos, permitindo, dessa forma, o
surgimento de outros sítios de significação. O estudo desse processo
permitiu delinear os seguintes lugares de resistência à colonização
lingüística:
1) Ao longo da colonização, os índios vão construindo um lugar
frente ao português, no qual eles redirecionam os processos de
significação engendrados na língua de colonização. Assim, a partir
de suas próprias línguas, a resistência se faz com base na simulação
dos gestos que legitimam a língua portuguesa aos olhos e ouvidos do
próprio colonizador. Reproduzem, por exemplo, a imagem da leitura de
textos escritos, mesmo sem saber ler; fingem que aprendem a língua
ou aprendem para discutir com comerciantes ou para refutar a
legislação que se estabelece a seu respeito; aprendem a língua
portuguesa e mentem valendo-se dessa mesma língua.
2) O aprendizado sistemático da língua geral, feito indistintamente
por moradores da colônia, produz comunidades discursivas opacas ao
entendimento da língua da metrópole.
3) Além disso, a gramatização do tupinambá pelos jesuítas, o “eleva”
a um patamar de língua européia, pois seu funcionamento gramatizado
permite a construção de uma escrita que venha dar forma jurídica às
novas relações sociais e políticas presentes na colônia.
4) Para as denominações, vão sendo engendradas memórias, ou seja,
vai sendo construída uma discursivização outra, ao mesmo tempo em
que vai sendo produzido um esquecimento das relações entre palavras
e coisas tal como se dava em Portugal;
5) Para além do ensino regular do português gramaticalizado ou da
gramatização do tupi, os espaços de oralidade organizados em torno
da língua geral e do próprio português se misturaram e se
entranharam no modo como a língua portuguesa ficou na colônia. Dito
de outro modo, a formação histórica da colônia é marcadamente
oralizada e, inversamente, nessa oralização estão materializadas as
histórias dos sentidos das duas línguas e a memória do modo como
ambas se modificaram em função da própria colonização lingüística.
6) A política lingüística planejada e executada não dá garantias
para uma estabilização dos sentidos postos em circulação e que vão
se constituindo em função do contato e à revelia das instituições
gerenciadoras do que se pode e se deve dizer.
Da colonização à institucionalização lingüística
Para a língua portuguesa se tornar língua de colonização, foi
necessário que ela fosse instituída, tivesse um caráter
institucional, conforme foi dito. Ela foi fundada como instituição,
legitimando Portugal como nação. Em termos históricos, aos
portugueses é natural, óbvio, ter a língua portuguesa como língua
nacional: português tanto designa o povo quanto a nação.
Na colônia, no entanto, não se reproduziu exatamente a naturalização
do que havia na metrópole, embora a colonização lingüística
estivesse voltada exatamente para tal reprodução. Operou-se uma
disjunção histórica na própria palavra português e, paralelamente,
constituiu-se uma nação com outro lugar enunciativo e com um outro
nome: brasileiro.
A língua portuguesa, instituição da nação portuguesa, foi
institucionalizada na colônia, ou seja, foi necessário um ato
político-jurídico − o já mencionado Diretório dos índios − para
institucionalizar, oficializar de modo impositivo que era essa, e
apenas essa, a língua que devia ser falada, ensinada e escrita,
exatamente nos moldes da gramática portuguesa vigente na Corte.
Institucionaliza-se, assim, A língua portuguesa com SUA memória de
filiação ao latim. O Diretório busca colocar em silêncio a língua
geral e seus falantes, caracterizando a referida língua como uma
“invenção diabólica”. Não se fala em um português-brasileiro. Ele ou
não existe aos olhos da metrópole, ou, se existe, precisa ser
corrigido, melhorado, reformatado de acordo com os moldes
gramaticais portugueses. Aos olhos da metrópole precisa ser a
continuidade da imaginária homogeneidade que confere o caráter
nacional a Portugal. Mas os processos históricos, como se sabe, são
continuidade e mudança, sempre.
Fonte: labeurb.unicamp.br
LUSOFONIAS
Era um mundo novo / Um sonho de poetas / Ir até ao fim / Cantar
novas vitórias /E erguer, orgulhosos, bandeiras / Viver aventuras
guerreiras / Foram mil epopeias / Vidas tão cheias /Foram oceanos de
amor / Já fui ao Brasil / Praia e Bissau / Angola, Moçambique / Goa
e Macau / Ai, fui até Timor/ Já fui um conquistador / Era todo um
povo / Guiado pelos céus /Espalhou-se pelo mundo /Seguindo os seus
heróis / E levaram a luz da tortura/ Semearam laços de ternura Foram
dias e dias e meses e anos no mar / Percorrendo uma estrada de
estrelas a conquistar Da Vinci, na Eurovisão, 1989
"A África é algo mais do que uma terra a ser explorada; a África é
para nós uma justificação moral e uma razão de ser como potência.
Sem ela seríamos uma pequena nação; com ela somos um grande
Estado.". Marcelo Caetano, 1935
"No meio das convulsões presentes, nós apresentamo-nos como uma
comunidade de povos, cimentada por séculos de vida pacífica e
compreensão cristã, irmandade de povos que, sejam quais forem as
suas diferenciações, se auxiliam, se cultivam e se elevam,
orgulhosos do mesmo nome e qualidade de portugueses."
Salazar, 1933
“É uma ponte que se constrói, uma ponte que une as margens distintas
das identidades culturais de cada um dos países de língua oficial
portuguesa, uma ponte que pretendemos inscrever no nosso imaginário
colectivo, num encontro cultural único, que amplie o nosso olhar
sobre os outros e sobre nós próprios, fortalecendo indelevelmente os
laços que nos unem e a nossa forma de estar no mundo.” Jorge Couto, ex-presidente do Instituto Camões, a propósito de uma
publicação durante a Expo 98.
A lusofonia poderá ser o conjunto de identidades culturais
existentes em países, regiões, estados ou cidades em que as
populações falam predominantemente língua portuguesa: Angola,
Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e
Príncipe, Macau, Timor-Leste e diversas pessoas e comunidades em
todo o mundo. Haverá entre estes países lusófonos relações
privilegiadas - na cooperação política e económica (situação
prodigiosa de unir as duas margens do Atlântico), na educação e nas
artes – grandes criadores que manejam a língua de forma criativa,
inventam outras pátrias de Camões, contribuindo com a sua obra para
ampliar a interculturalidade lusófona: Pepetela, José Craveirinha,
Saramago, Jorge Amado, Luandino Vieira e tantos outros. Essa delimitação imaginária será geográfica, de poder, de
identidade, de descrição comum, mas é, antes de mais, um projecto,
uma construção artificial, como são todas as fronteiras, nações e
conjuntos de nações3.
Neste espaço, que se convencionou chamar de ‘lusófono’, partilha-se
a mesma língua nas suas várias recriações. É certo e fantástico:
viaja-se numa floresta tropical, no rio do Amazonas, nas montanhas
de Díli, numa estrada da Huíla e podemos conversar em português,
vamos a um café em Bissau ou uma esplanada em Cabo Verde e gozamos o
momento de ler o jornal na nossa língua (ainda que nem sempre em
português nos entendemos, pois para muitos a língua oficial é uma
língua estrangeira que cumpre apenas funções administrativas).
Que identidades culturais partilham estes países para além da
especificidade da língua (que já é muito) e do destino de emigração
ser a antiga metrópole? Porque têm de ser tomados em conjunto, como
um pacote de países, estas diferentes culturas a quem aconteceu
terem sido esquartejadas em países colonizados pelo mesmo poder
central? E de que se trata quando se pretende fortalecer a “nossa
forma de estar no mundo”? Que olhar é esse nosso olhar? Quem é este
nós? À partida um ‘nós’ é feito de coisas muito diversas e, se
referido ao português, devia ser o oposto de um motivo de orgulho.
A lusofonia depende da “narração de uma certa história da
colonização portuguesa, que justifica um certo presente” (como
referiu António Tomás, explicando como era necessário contar
histórias alternativas, por exemplo a de Amílcar Cabral4), pois se o
presente se faz da reaplicação de narrativas fundadoras, quase todas
aleatórias e/ou construídas, e de interpretações da história, se as
histórias forem outras o presente implicitamente o será. Mas até
agora o que existe são estes discursos ancestrais que passaram, com
uma nova maquiagem, a ser ‘senso-comum’. A lusofonia, apesar de
actualizar o passado colonial e protelar o imaginário imperial, não
é incomodativa porque se revestiu de um discurso arejado, menos
chato do que a celebração dos descobrimentos, ainda que dela se
alimente.5 E a retórica da interculturalidade - como a Expo 98, o
Ano Europeu do Diálogo Intercultural em 2008 e outras efemérides -
dá-nos a sensação de estarmos num espaço que se pretende
politicamente correcto e preocupado com as questões fundamentais
aliás de como viver com o Outro. Porém, tal discurso contém os seus
perigos quando “manifesta um desejo utópico de retratar a história e
as relações entre diferentes comunidades ao nível global, como sendo
uma relação sem poder, sem conflito.” (Vale de Almeida, 1998: 237)
Ou seja, tende a elidir o processo marcado pelo conflito e pelas
relações de poder, retrabalha o passado de forma celebratória e não
problematizante.
Precisamos pois de perceber melhor o que está por detrás de todos
estes discursos - produzidos de acordo com as políticas e ideologias
mais viáveis - no sentido de “evitar a recepção acrítica de
tendências particulares, evitando assim que estas sejam
apressadamente generalizadas ou universalizadas” (Sanches, 2007:
10), e no interesse de pensar mais pelas dúvidas do que pelas
certezas vinculadas na narrativa da História. Refiro-me à lusofonia (discurso oficial e práticas) no enfoque da
relação Portugal / países africanos de língua portuguesa. O caso do
Brasil (na sua dimensão continental) ou terras asiáticas são
fenómenos diferentes embora enquadrados na mesma lógica.
A designação de PALOP, uma vez mais, é também um abstracto conjunto
resultante da cartografia imperial. Sabemos bem como estes países
visados contêm no seu seio inúmeras particularidades, já
internamente vítimas da hegemonia contra as suas outras nações
dentro do conceito de Estado-Nação. E note-se que, neles, a língua
portuguesa foi uma ferramenta que “devia servir para produzir novas
nações (e não apenas novos países) criando identidades unificadas
contra etnicidades precedentes. A língua portuguesa não era uma
língua nacional mas uma língua de unidade nacional.
“laços” lusófonos
Do outro lado da moeda, alguns comportamento de alguns portugueses
que vivem em países africanos são, também eles, similares aos dos de
outros tempos: vivem igualmente a sua cultura de gueto, no eixo
casa-jipe-empresa, vão a praias vigiadas, frequentam meios
privilegiados, tratam por “locais” os africanos e perpetuam na sua
cor de pele as conotações económicas. Alguns portugueses vivem por
‘lá’ mas em constante desconfiança, cheios de preconceitos sobre o
‘cenário’ à volta, numa pose neo-colonial mas mais tímida e
discreta, sem lhes ser permitido fazer certas afirmações no espaço
que já não é o “seu”, mas do qual ainda se julgam donos,
reivindicando (compreensivelmente) uma herança familiar e histórica
que ainda pesa nas suas apreciações e fruição do vasto espaço
africano. Às vezes, também pesa na consciência, e então tornam-se
condescendentes com tudo, culpando o colonialismo e as relações do
passado de todos os males actuais, à la Kadafi. Outras vezes, com um
riso cínico da incapacidade dos africanos se auto-organizarem.
Porém, em nada África lhes é indiferente: o fascínio da pureza, do
sangue, a disfuncionalidade, a doença, a infantilidade, o desgoverno
e o caos são coisas que atraem e fazem proliferar ong’s com legiões
de jovens ocidentais numa pretensão ‘altruísta’ nas mesmas bases da
missão evangelizadora do tempo colonial.
Entre as várias atitudes nas formações discursivas em relação a
África, como assinalou Ana Mafalda Leite (2003: 23), contam-se a
paternal (com resquícios coloniais, encarando o outro com distância
e tolerância), a deslumbrada, a adesão incondicional (quase
acrítica), e a solidária, que faz a ponte com o passado (somos todos
inocentes, partilhámos a história passada), de alguma forma ligada à
lusófona, no que tem de “versão democrática de como o encontro dos
portugueses com os outros povos foi diferente dos outros, e de como
esses povos têm saudades do nosso convívio” (Ana Barradas, 1998:
232).
Mais uma vez, essa visão de excepção subjacente ao colonialismo
português está presente nas retóricas bem intencionadas do encontro
ou partilha de culturas, tendo de ser questionada na sua veracidade
e na sua origem para que o “cinismo de Estado” não disfarce as
realidades quotidiana promoção de lusofonia.
Apesar do discurso aparentemente empenhado da lusofonia, na
realidade não existe verdadeiramente uma consciência lusófona, não
há lóbi lusófono na ONU ou na OMC (pelo menos se compararmos com a
francofonia), nem tem assim tanta coesão, nem no plano económico nem
político. Nem em termos de identidade: quase nenhum africano ou
brasileiro se afirma enquanto ‘lusófono’ (só ouço portugueses
falarem disso).
O que une os “lusófonos” afinal hoje em dia, que ‘potencial’ é este
para o qual devemos encontrar uma estratégia de consolidação? Será
então a partilha de cultura: conhecimento das histórias e
literaturas uns dos outros, gostos culinários, musicais, o futebol?
Se assim for, a dúvida persiste no que toca à estratégia dos
promotores da lusofonia, uma vez que o desinteresse é a tónica
dominante nas várias áreas de expressão. Como questionava Kalaf numa
crónica do Público: “Será que nos interessamos realmente pela
lusofonia? Ou este é um conceito que serve tão-só a maquinação
mediática? O Brasil, aparentemente, pouco se importa com a
actualização deste luso-qualquer-coisa e Angola está a seguir o
mesmo caminho.”
Este desinteresse provirá talvez do facto das práticas também
remontarem ao passado. Os agentes de promoção da lusofonia ainda
funcionam como centro cultural na ‘metrópole’ que subsidia os vários
representantes no terreno sem qualquer noção das realidades desses
países, sem estratégia conjunta de programação, etc. O espaço
lusófono acaba por ser a tal “bolha onde tudo é possível e tudo se
consome”, retomando a ideia de Lívia Apa, “um mundo criado pelo
‘laço’ da língua portuguesa, dentro do qual os escritores transitam,
se movem, trocam visitas, falam, escrevem, são lidos, mas fora do
qual eles próprios não conseguem encontrar o seu lugar, como se
fossem até incapazes de ter acesso ao que acontece fora da
lusofonia.
Por exemplo, os escritores africanos leem pouco os outros
africanos não lusófonos.”
O fechamento para outros espaços como reflexão cria essa bolha de
protecção nas rédeas de um circuito fechado e alienante. O facto da
produção literária passar pelo mercado português para ser legitimada
(o cânone produzido de forma exógena), e nessa obrigação ter como
porta de acesso o ‘exótico’, a única permitida pois o mercado sabe
bem fazer rentabilizar a ‘diferença’, por vezes condiciona a própria
forma de escrever (como se se escrevesse para português ler),
praticando uma tradução cultural de si-mesmos. Os escritores
africanos pouco lidos nos seus países de origem são-no mais na
Europa, onde há mais leitores, e também aqui pode pôr-se a hipótese,
como avançou Inocência Mata, de uma reedição da política do
assimilacionismo cultural e de continuidade do império na cultura.
(Mata, 2007: 288)
A língua portuguesa era o suporte do Império e hoje é o suporte da
lusofonia no que concede de possibilidade de universalismo. Para
reforçar esta partilha há que promove-la, o que não tem mal nenhum
se não se partisse do princípio de que cabe aos portugueses o
controlo da língua portuguesa. Desta forma, escreve Alfredo
Margarido (2007), “a língua deixaria de ser um instrumento capaz de
ser utilizado por qualquer grupo ou mesmo indivíduo, pois seria não
só a criação mas sobretudo propriedade dos portugueses. Se partirmos
do princípio que a língua pertence àqueles que a falam, regista-se
uma profunda autonomia dos locutores de português. Se esperamos que
a língua continue a expandir-se, devemos em contrapartida refrear o
instinto de dominação que continua a marcar a sociedade portuguesa.”
Veremos agora em relação ao novo acordo ortográfico o que vai mudar
neste capítulo, bem presente nas vozes mais conservadoras deste
debate.
É como se a língua, o património dos falantes de português, fosse o
último território que ficou por descolonizar, como sugeriu o
escritor timorense Luís Cardoso no colóquio acima referido.
Mas só que quem está a dar cartas desta vez, num processo autofágico
de pegar na norma e subvertê-la, ao contrário do colonialismo
linguístico pretendido, são outros: “reinventamos o português, os
tugas a aprenderem connosco, somos colonos desta vez” rapa o
angolano Kheita Mayanda no tema “É dreda ser angolano”. E é
equacionando estas variantes todas do português, com muitos mais
falantes e criatividade, sem sobreposição da norma do suposto
‘centro’ da língua, que a língua portuguesa se enriquece.
A música poderia ser a excepção, onde o discurso do “espaço
lusófono” faria algum sentido uma vez que, desde o séc. XV, tem sido
um elemento de fortes trocas culturais percebendo-se a saudável
contaminação dos ritmos e conhecimento das origens da música nos
vários países de língua portuguesa. Exemplos: o fado que é da
família do lundum e da morna; a curiosidade dos cantautores de
intervenção portugueses pelas sonoridades da música africana e
brasileira; a partir dos anos 90, a alavanca de projectos como Rap
Mania ou Kussondolola (que fez a ponte com África na cultura jovem)
e, hoje em dia, inúmeras bandas de fusão. A música que circula na
cultura urbana recupera o semba, mornas, e apresenta imensos pontos
de contacto entre as várias culturas.
Apesar da lusofonia musical ser uma realidade constatada, mais uma
vez o próprio projecto lusófono se desintegra na prática. As
produtoras portuguesas andam a dormir. No filme Lusofonia, Sons da
(R)evolução os músicos e agentes musicais lamentam a falta de
investimento nacional e terem de recorrer a editoras não portuguesas
(sobretudo francesas e holandesas, no caso das cantoras Lura,
Cesária Évora, Sara Tavares, Mariza) com melhores condições, da
gravação à promoção passando pelos prémios. As editoras portuguesas
estão desatentas à fonte inesgotável de boa música da noite
afro-lisboeta, não acreditam e não cuidam do seu ‘património
linguístico’ - a música em língua portuguesa ou crioulo em muitos
casos - como mercado de confluência de culturas. Por complexos,
falta de visão? De vez em quando descobrem incríveis fenómenos como
o kuduro progressivo, caso dos Buraka Som Sistema. Mas mesmo assim,
o kuduro, sobretudo o original e dos guetos, é subaproveitado no seu
potencial: “se fosse de Berlim, Nova Iorque ou Londres o kuduro era
uma música do mundo” diz, no mesmo filme, o crítico Vítor Belanciano.
Nas artes plásticas parece que a maioria das abordagens vão de
encontro a um espírito que cristalizou uma ideia de arte africana,
tradicional e ao gosto dos africanistas. Ou para satisfazer um
mercado ávido de naif e novos primitivismos, bastante condescendente
e que sobrevaloriza os contextos dos artistas em relação à sua arte.
De vez em quando há iniciativas que reflectem uma visão
contemporânea e introduzem uma série de questões ligadas às teorias
pós-coloniais, mas colocam sempre o enfoque na tal devolução da
imagem de um centro: os vestígios dos portugueses em África, ou como
os africanos vêem os portugueses cá, ou os descendentes de
colonizados descobrem as suas origens, etc. Outros eventos passam à
margem da aglomeração lusófona (e do próprio meio artístico
português).
Estes exemplos de má promoção da lusofonia acabam por convergir na
ideia de que não se tem investido a sério neste espaço, cuja
sustentação não é desinteressada. Os laços criados entre as culturas
destes países existem naturalmente nas histórias de vida, a maioria
delas empurradas pela realidade anterior de criação de colónias, que
leva agora a que se emigre para o sítio de onde esses que as
povoaram partiram (e outros, no fluxo contrário, partem à procura do
el dourado do investimento em África), ou por questões de guerra,
economias desmembradas, desemprego, estudo, desamor, ou mil razões
que fazem as pessoas circular para realidades nem sempre
acolhedoras, mas que proporcionam a recriação da sua identidade. A herança da história trágico-marítima foi transformada em discursos
sobre ‘pontes’ e laços culturais, depois de uma vez se terem criado
pontes aéreas para fugir da insustentabilidade de uma situação
ideológica que eram as colónias. E toda essa partilha que se
pretende efectiva actualmente, é também ela ideologicamente
questionável, com interesses e práticas que insistem nos mesmos
termos e dados do jogo.
É preciso auto-reflexividade para estancar a reprodução dos mitos do
antigamente.
Questionar as bases deste modelo e defesa da lusofonia poderá ser um
princípio para uma mudança de paradigma: interessa lidar com
subjectividades e particularidades, contextualizando de onde vêm
estas relações, e não com abstractos conjuntos de países que, além
da língua e de episódios históricos, não se revêem necessariamente
nesse bonito retrato de família que Portugal quer passar e do qual
faz uso sempre que lhe convém.
Publicado na revista Jogos Sem Fronteiras, edições Antipáticas
A CPLP na agenda e no discurso brasileiros
Na última semana de setembro de 2008 foi firmado pelo Brasil o
acordo ortográfico, que uniformiza o uso da linguagem entre os
países de língua portuguesa. Quase ao mesmo tempo, poucos dias
depois, a maior companhia brasileira, a Petrobrás, perdeu a
concorrência para a Marathon Oil na exploração de petróleo em
Angola. Em meados de outubro, em viagem a Moçambique, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva queixou-se de que um projeto para
construção de uma fábrica de remédios contra Aids/Sida, prometida
desde 2003, ainda não estava em execução.
No primeiro caso, tratava-se de um projeto de antiga origem que
encontrou dificuldades dos dois lados do oceano Atlântico, embora já
tivesse sido acordado desde dezembro de 1990. Certamente, como diz o
embaixador de Portugal no Brasil, Francisco Seixas da Costa, "este
acordo pode ser considerado estratégico, já que uma escrita comum
vai permitir que o português seja uma língua internacionalmente
reconhecida"13. No segundo, a derrota deveu-se, provavelmente, à
maior eficiência das políticas implementadas pelo governo chinês em
continente africano, embora com presença naquela parte do mundo há
poucos anos, muito menos, portanto, do que a presença brasileira,
não apenas nos países de língua portuguesa, mas também em outros
Estados, como Nigéria, Senegal, etc. Já no terceiro caso, a culpa
pelo fracasso da iniciativa era da própria inoperância das
instâncias brasileiras que, cinco anos depois do que foi prometido,
não tinha os recursos liberados pelo Congresso para a construção de
fábrica de remédios. (NOSSA, 2008: B4)
Esses três fatos são, provavelmente, as variáveis mais importantes
de relacionamento entre todos os parceiros que fazem parte da CPLP.
Um se refere aos aspectos culturais envolvidos, outro diz respeito
aos fortes interesses econômicos em jogo, e por último as
dificuldades existentes para implementar acordos, ainda que
prometidos tempos atrás.
Considerar uma vertente importante, como a identificação cultural e
lingüística que vem desde muitas gerações, não significa que isto se
traduza em vantagens econômicas e financeiras, embora estejam
presentes grandes empresas brasileiras, do porte da Petrobrás, ou de
setores de construção civil para a abertura de estradas, feitura de
barragens, etc.
O governo brasileiro, com certeza, sempre teve consciência de
problemas dessa natureza, inclusive com seus vizinhos mais próximos
do próprio continente. Evidentemente, como costuma acontecer, podem
ter ocorrido erros de cálculos e interpretações, más avaliações
tanto conjunturais, quanto em termos das intenções reais de seus
parceiros.
Contudo, deve-se ponderar, porém, que nem sempre o relacionamento
foi pautado apenas visando lucros imediatos. Pode-se dizer que, em
termos gerais, as relações externas brasileiras, da mesma forma como
se comporta a maior parte dos países do mundo, contemplam as duas
facetas: uma em que se espera o retorno, se não imediato, pelo menos
depois de um certo tempo, das atitudes tomadas no intercâmbio
bilateral ou no envolvimento global nas instâncias regionais e de
escopo mundial; a outra, em que pouco ou nada se pode esperar dos
parceiros e das instituições, mas que nem por isso devem ser
negligenciadas, sobretudo quando outras variáveis estiverem
presentes, como o histórico dos países envolvidos, os vínculos
culturais, os laços afetivos, etc.
Nesse sentido, a importância concedida pelo Brasil a organismos como
a CPLP tem sua razão de ser. Por isso, mereceu atenção especial
desde a década passada, quando se constituiu a própria entidade. Na
realidade, a proximidade brasileira com todos os países de língua
portuguesa com freqüência recebeu atenção, ainda que nem sempre
estivesse na linha de frente da pauta do Itamaraty. No entanto,
pode-se afirmar que a importância concedida pelo Brasil à CPLP é
proporcional a que a mesma desfruta no cenário internacional. Não é
apenas em relação a CPLP como instituição, mas com todos os países
que a compõem, a não ser em momentos específicos.
Nas últimas décadas, pode-se lembrar o vínculo mais estreito, por
exemplo, do Brasil com Portugal no governo de Juscelino Kubitschek
de Oliveira e, em outras ocasiões, com Jânio da Silva Quadros ou
Humberto de Alencar Castelo Branco, quando se aventou a
possibilidade de formação de uma comunidade luso-afro-brasileira. No
governo de Ernesto Geisel, o reconhecimento de Angola e Moçambique
em 1975 foi sinal de aproximação com esses países, sob a ótica do
pragmatismo responsável. Outros momentos parecidos aconteceram com
José Sarney e Itamar Franco antes de ser firmada a carta de criação
da CPLP sob o mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Não se deve, porém, presumir que a atenção concedida a esses países
se assemelha ao papel exercido por outros como Argentina, Estados
Unidos, Japão, Reino Unido, Alemanha ou França além de nações
emergentes como a China, Rússia, Índia e África do Sul. Além da
retórica de países irmãos unidos pela história, os indicadores entre
Brasil e CPLP estão aquém do que se poderia considerar relações
privilegiadas. Dados apresentados em trabalho recente, indicam
claramente as preferências brasileiras para três grandes países:
África do Sul, Angola e Nigéria. É o que se poderia chamar
igualmente de parcerias seletivas no continente africano. (RIBEIRO,
2007: 172-195).
Não se pode afirmar, contudo, que a CPLP não tem importância para a
política externa brasileira. Desde sua criação, a CPLP pode ser
entendida como um grupo que pode, em momentos variados, dar
substancial apoio às pretensões brasileiras em nível mais geral. Mas
não se pode, também, negligenciar o papel que o país procura exercer
junto a essa comunidade, como aquele que tem maior projeção e
capacidade internacionais.
Ou seja, a presença do Brasil na CPLP pode ser vista sob duas
perspectivas: de um lado, no uso da mesma para projetar os
interesses brasileiros no exterior, ou seja, uma instrumentalização
feita pela política externa brasileira, visando maximizar o uso de
todos os recursos possíveis existentes, inclusive para ocupar
espaços maiores do que outros países junto às nações que fazem parte
da comunidade; por outro lado, pode-se, igualmente inferir que,
apesar do "pragmatismo" de sua política externa, o Brasil também
pensa em termos de atuação conjunta da CPLP para atender interesses
globais que não seriam possíveis de se obter individualmente.
Quando se formou a entidade, o governo brasileiro manifestava
claramente a simpatia pela iniciativa, e pela necessidade de se
configurar um espaço maior para aqueles que tinham muitas
identificações, e que não poderia, certamente, ser melhor sucedida
se o Brasil dela não fizesse parte, já que é o maior deles, com
relativo peso na arena internacional.14
Os esforços do ex-ministro da Cultura e ex-embaixador brasileiro em
Portugal José Aparecido de Oliveira são amplamente reconhecidos como
fator fundamental para que a empreitada fosse coroada de êxito pelo
menos para sua criação. Em depoimento prestado anos depois, o
embaixador assim se referiu à entidade:
Pudemos reunir em São Luís do Maranhão os Presidentes dos países
lusófonos, criando o Instituto Internacional da Língua Portuguesa,
primeiro passo da CPLP e do aprofundamento das relações futuras.
Quando o Presidente Itamar Franco chegou ao governo, conhecia as
iniciativas anteriores e lhe fiz o relato da situação. Convidou-me,
então, para representar o Brasil em Lisboa e encetar conversação em
busca de uma aliança diplomática formal entre nós e os países de
expressão portuguesa. Como era comum na diplomacia do passado, fui
enviado a Lisboa com uma missão multilateral, e o fiz, como sempre
agimos os mineiros: com lealdade, transparência e respeito absoluto
aos nossos parceiros. Cumpri, com espírito de missão, o meu dever.
Ao deixar Lisboa, no fim do honrado mandato do Presidente Itamar
Franco, estavam firmes os pilares da CPLP.(OLIVEIRA, 2002:26)
Mas, mostrava, igualmente, nessa mesma oportunidade, ressentimentos
sobre a forma como o Itamaraty se comportava em relação aos países
de língua portuguesa, especificamente no caso dos graves problemas
enfrentados por Timor.
Estamos dando, nestes dias, uma prova concreta dos nossos ideais,
com a nossa presença em Timor Leste. Devo recordar a firmeza do
Presidente Itamar Franco, ao chegar a Lisboa, como embaixador, na
defesa da independência daquele povo irmão. Suas palavras,
asseguradas pela autonomia moral na representação dos interesses
permanentes e das razões morais de nosso país, não foram recebidas
com o devido respeito por setores petulantes da burocracia do
Itamaraty. Não fosse essa sua intervenção corajosa e transparente e
não teríamos, como tivemos, um brasileiro com o mandato das Nações
Unidas para conduzir os atos da transição em Timor. (OLIVEIRA, 2002:
27)
Esse depoimento comprova, sem deixar margens a dúvidas, o
envolvimento do embaixador Oliveira na criação da CPLP, mas deve ser
visto sob uma ajustada lente. Em primeiro lugar como ressalta, a
lealdade entre mineiros. Tanto ele como o presidente Itamar Franco
são do estado de Minas Gerais e antigos militantes do mesmo partido,
daí os vínculos estreitos existentes entre ambos, um dos motivos
pelos quais foi convidado a ocupar a Embaixada em Lisboa e ter sido
ministro da Cultura. Em segundo lugar, o fato também de o próprio
presidente Itamar Franco ser nomeado depois para a mesma Embaixada,
assim que deixou o Palácio do Planalto. Como ambos eram externos ao
corpo diplomático, e no caso de outros parecidos, o Itamaraty nunca
viu com bons olhos a nomeação de políticos, portanto, pessoas fora
da instituição, para representar e falar em nome do país, ainda que
em uma representação diplomática de menor porte, que não faz parte
do circuito Elizabeth Arden, mas situada em território europeu e
sempre alvo de demandas por parte dos embaixadores.
Pode-se entender, portanto, a pouca receptividade concedida pelo
Itamaraty à atuação sobretudo do ex-presidente Itamar Franco,
inclusive pelas suas peculiaridades e falta de vocação para
desempenhar tal cargo. Por outro lado, pode, também, indicar que
países menores, com pouca expressão, apesar das denúncias sobre
direitos humanos, que colocavam o Timor na agenda diária
internacional, não valiam, segundo a concepção do Ministério das
Relações Exteriores, investimentos maiores, já que os retornos
seriam extremamente reduzidos ou muito modestos, não só naqueles
dias, mas ao longo do tempo. Claro que na retórica do discurso
diplomático, sempre mereceram importância, e foram objetos de
convênios culturais, científicos, educacionais, mas restringindo-se
a poucas áreas, e com recursos limitados.
Independentemente de quais foram os inspiradores para a
concretização da CPLP, como já discutimos anteriormente, além do
mais isso pouco importa, o momento em que a entidade foi criada já
trazia em seu cerne, as primeiras dificuldades. Embora tenha sido
formalizada no governo de Fernando Henrique Cardoso em 17 de julho
de 1996, depois de um longo processo de maturação que vinha já desde
1989, com a reunião em São Luís do Maranhão, a realidade é que as
opções de inserção brasileira privilegiavam claramente outros
vetores, que não os dos países secundários do sistema mundial. Isto
era de todos conhecido, ainda que em termos de discurso expresso,
por exemplo, pelo então chanceler Luiz Felipe Lampreia, a CPLP fosse
considerada de extrema importância.
Na recepção oferecida pelo seu colega Jaime Gama, Ministro dos
Negócios Estrangeiros, em 4 de dezembro de 1996, em Lisboa, o
chanceler brasileiro afirmava que:
"A CPLP haverá de ser um instrumento de cooperação, entendendo a
concertação entre os países africanos de língua oficial portuguesa,
o Brasil e Portugal, sem qualquer veleidade de hegemonia, mas com um
espírito construtivo e a determinação de ocupar um espaço condizente
com o peso específico da própria comunidade". (LAMPREIA, 1999: 134)
Pouco depois, no primeiro aniversário da entidade, repetia falta
parecida, em 17 de julho de 1997, quando da abertura da Conferência
Ministerial da CPLP em Salvador - Bahia.
"Ao realizar esta reunião aqui em Salvador, quisemos significar, sem
ambigüidade, o quanto estamos empenhados em fazer da CPLP, de forma
gradual, mas efetiva, uma realidade diplomática, uma força a favor
de todos nós, que nos ajude a melhor projetar e defender, na base do
consenso, os nossos interesses internacionais comuns". (LAMPREIA,
1999: 160)
Aqui pode-se adicionar um pequeno comentário. Se algo existe na
arena mundial, é justamente a falta de coincidência de interesses
comuns entre os países de língua portuguesa, além, certamente, dos
esforços para viabilizar o idioma como oficial no âmbito da
Organização das Nações Unidas. No mais, cada um sempre agiu à sua
própria maneira e às custas de seus próprios esforços, ou dentro das
organizações às quais pertencem no plano mais próximo,
principalmente geográfico.
Por isso, possivelmente, pode-se entender os poucos esforços
realizados tanto por Brasil, quanto por Portugal, os dois maiores da
comunidade, e que foram assim entendidos por Mario Soares, anos
depois. Aliás, é comum tanto nos discursos oficiais, quanto na
própria produção acadêmica sobre a CPLP, a menção ao fato de os
países membros pertencerem simultaneamente a várias outras
organizações, o que tornaria possível ampliar a projeção dos
interesses dessa comunidade, e que não necessariamente corresponde à
verdade dos fatos.
Na abertura dos trabalhos da ONU, em setembro de 1996, o
ex-chanceler chamava atenção para a existência (e os limites) da
CPLP.
"Pela primeira vez, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe comparecem à Assembléia
Geral das Nações Unidas organizados na Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa, voltada para a cooperação e a coordenação
política. Em consulta e de forma concertada, os países membros da
Comunidade esperam atuar com maior intensidade nas Nações Unidas,
para melhor promover os seus interesses comuns e projetar a
identidade lingüística, cultural e histórica que os une". (LAMPREIA,
1996: 611)
E mais não disse. Enquanto o espaço dedicado à CPLP ocupou oito
linhas de seu discurso, em uma mera formalidade, o MERCOSUL, em
contrapartida, preencheu o dobro, exatamente 16 linhas de sua fala.
No outro ano, em 1997, a única menção foi sobre o caso de Angola,
quando disse que "O Brasil, no exercício da presidência da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, exorta a comunidade
internacional e particularmente os países que integram o Conselho de
Segurança a exercer uma vigilância atenta e severa sobre o processo
de paz em Angola".(LAMPRÉIA, 1997: 630)
Enquanto ocupou o cargo de chanceler, Luiz Felipe Lampreia
pronunciou-se mais três vezes, abrindo as sessões de trabalho das
Nações Unidas. Em 1998 e 1999 referiu-se ainda aos casos de Angola e
Timor, e, lateralmente, à CPLP. Já em sua última participação
mencionou os dois casos, mas de formas diferentes: em Timor, para
dizer que ali se desenhava um novo Estado, sob a liderança de Sérgio
Vieira de Mello; sobre Angola, para denunciar a persistência do
conflito, no que considerava uma "resistência inaceitável da Unita
em obedecer às decisões e aos direitos internacionais". (LAMPREIA,
2000: 674-675) Neste último ano, a CPLP já havia desaparecido de seu
discurso.
Nas duas últimas sessões da Assembléia Geral da ONU, sob o mandato
de Fernando Henrique Cardoso, a CPLP perdeu definitivamente seu
espaço, quando o próprio presidente lá compareceu e pronunciou o
discurso de abertura em 2001, fazendo brevíssima menção ao Timor
Leste, enquanto em 2002, o novo chanceler Celso Lafer apenas lembrou
Angola brevemente.
Nas obras publicadas fazendo um balanço de suas gestões frente à
Chancelaria, tanto Luiz Felipe Lampréia quanto Celso Lafer, além das
menções feitas anteriormente, quando reproduzem os discursos,
deixaram completamente de lado a existência e a importância da CPLP.
(LAMPREIA, 1999; LAFER, 2002)
O presidente Fernando Henrique Cardoso, que ocupara a Chancelaria no
governo de Itamar Franco no começo da década de 90, tinha uma
percepção bastante precisa do contexto internacional. Assim, em pelo
menos duas ocasiões dizia o que entendia pelo mundo em construção, o
novo mundo globalizado, interdependente, mas também muito
competitivo. Na primeira, em conferência pronunciada em Nova Delhi,
em janeiro de 1996, portanto, no mesmo ano de criação da CPLP,
enfatizava que o novo contexto "tem levado a uma acirrada competição
entre países - em particular aqueles em desenvolvimento - por
investimentos externos". (CARDOSO, 1997: 7) Um mês depois repetiu os
mesmos argumentos, em nova palestra, desta vez na cidade do México,
em 20 de fevereiro.
(CARDOSO, 1997: 20)
Certamente para o presidente Cardoso, os países em desenvolvimento
capazes de oporem-se aos grandes eram os do porte da Índia, África
do Sul, China. É o que seria chamado depois de parcerias seletivas,
nas quais, automaticamente, estariam excluídos países com pouca
expressão ou nenhuma capacidade de agregar competências para
transformar o mundo, ou de atender as necessidades da política
externa brasileira em termos de projeção de poder.
Sob esse prisma, as nações de língua portuguesa obviamente não se
enquadravam dentro das prioridades brasileiras, e que pudessem
auxiliar na inserção mais favorável do país no mundo. Nada de
estranho que assim tivesse se comportado a política externa
brasileira. Em uma conjuntura completamente distinta daquela que
marcara o mundo durante quase quatro gerações, o governo entendeu
que se devia fazer opções para enfrentar tal quadro.
Nesse novo mundo que emergia, e onde se percebia que poderia haver
espaços para países como o Brasil e outros, vistos como potências
emergentes, partiu-se do claro entendimento de que, nesse contexto
multilateral e competitivo, apenas poucos seriam chamados a jogar
papel de maior relevo. Por isso, ao Brasil pouco representava
vínculos mais estreitos - com fortes investimentos - cujos
resultados não pudessem auxiliar em sua trajetória ascendente.
Comportamento semelhante já era observado no governo de Fernando
Collor de Mello, nos inícios da década de 90, quando claras opções
foram feitas privilegiando as grandes nações industrializadas,
mormente no que tange ao governo da Casa Branca.
Se, com Itamar Franco, os países de língua portuguesa ocuparam
espaço maior, não era, contudo, tendência a ser seguida nos últimos
anos na virada do século. Por isso, os grandes países, as nações
emergentes e o Mercosul - em função de suas particularidades e
proximidade geográfica - receberam prioridade cada vez maior.
Certamente isto tudo não se converteu nos resultados esperados, pelo
menos com a ênfase que se poderia desejar. Mas, por outro lado, isto
pode ser creditado a pelo menos dois fatores. O primeiro é que
quando se opta por determinada linha de atuação internacional, o
governo vê a formulação e implementação da política externa por seu
lado, esperando que tudo corresponda às suas expectativas, embora
saiba que não controla nem a vontade dos parceiros, nem a conjuntura
internacional. Em segundo lugar, as bruscas mudanças, tanto internas
quanto do cenário mundial, dificultam que suas expectativas sejam
coroadas de êxito. Como são variáveis incontroláveis, a formulação
da política externa pode ter boa margem de acerto se o cenário for
durante certo tempo estável, não sofrendo, portanto, grandes
oscilações.
Têm sido muitos os que discordam dos rumos da política externa nos
últimos anos.15 Deve-se ponderar, entretanto, que decisões têm de
ser tomadas em prazo relativamente curto, de acordo com a avaliação
que o grupo que está no poder faz de seu projeto, do que pode
esperar de seus parceiros e das conjunturas doméstica e
internacional. Assim, quando a política externa está sendo pensada e
executada, os erros de cálculo certamente vêm à tona e inibem os
resultados esperados pelos formuladores nacionais.
Sob esse ponto de vista, também tem sido numerosos os equívocos
tomados pelos responsáveis por essa área no país. Adicione-se a
isso, as próprias divergências entre os decisores da política
externa nas mais distintas esferas ou de proximidade com a
Presidência da República. Essas diferenças de opinião têm sido
observadas ao longo do tempo, quando uma instância próxima ao
Presidente assume uma postura, depois reformulada pela chancelaria,
por exemplo, que busca explicar melhor o que se deve entender pelo
tema ou como o país defenderá suas posições nas arenas
internacionais. Não tem sido poucas as vezes em que o próprio
presidente Lula tem emitido opiniões com pouco ou nenhum respaldo
sobre temas internacionais e realidades que desconhece. Outras
vezes, o próprio Ministério das Relações Exteriores não tem
correspondido às expectativas quanto às suas escolhas e formas de
agir. Tudo isto, entretanto, depende, também, de qual seja o projeto
que o grupo no poder vislumbra para si e para o país.
Destarte, as opções feitas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso
são, em certa medida, bastante distintas das tomadas por seu
sucessor, sobretudo no que diz respeito à importância do papel
desempenhado pelos países de menor projeção em termos de poder
global.
Da mesma forma em que as opções feitas por Fernando Henrique Cardoso
passaram a ser intensamente criticadas após o mesmo deixar o poder,
e mesmo no cargo, acusado de "entreguismo" e adesão indiscriminada
ao modelo neoliberal, seu sucessor igualmente sofreu várias
críticas. Entre essas, podem ser citados desde o perdão da dívida
aos países latino-americanos e africanos, ao reconhecimento da China
como economia de mercado não recebendo contrapartida que fizesse jus
à sua generosidade. Outros fracassos podem ser mencionados, quando o
país sofreu derrotas em oportunidades diversas, por exemplo, quando
concorreu aos cargos de direção geral da Organização Mundial do
Comércio (OMC), lançando o nome do embaixador Luis Felipe Seixas
Correia e para a presidência do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), com João Sayad, para ficarmos nos dois mais
expressivos.
As visitas de Lula ao continente africano mostram em princípio que,
além das boas relações com as grandes potências e com os países
emergentes, foi possível dar atenção, não deixando de lado aqueles
que pouco poderiam oferecer ao país, pelo menos em termos imediatos.
A criação de 35 novas representações diplomáticas no governo Lula,
sendo 15 em território africano, deixa bem claro a importância
concedida aos PEDs (MARIN, D.C., 2009). Mesmo no Cone Sul, o Palácio
do Planalto tem mantido o que no jargão diplomático se convencionou
chamar de "paciência estratégica", fundamentalmente com a Casa
Rosada.
A atenção concedida aos países africanos e da CPLP pode ser vista em
algumas oportunidades nos últimos anos. Por ocasião do V Encontro da
entidade, realizado em São Tomé e Príncipe, no final de julho de
2004, quando reuniu os representantes de cada nação, o governo
brasileiro chegou mesmo a financiar o evento doando 500 mil dólares,
além de infra-estrutura de comunicação e material de informática,
que depois ficariam lá. Na VII Cimeira realizada em julho de 2008,
em Lisboa, para divulgar a língua portuguesa, deu-se ênfase na
dinamização do Instituto Internacional de Língua Portuguesa, com o
governo brasileiro prometendo empenho e realçando a importância
desse fato. Outros elementos podem, ainda, ser arrolados, como a
iniciativa brasileira de propor acordos do Mercosul - tendo já
obtido aval de seus parceiros - com a CPLP, excluindo Portugal, para
favorecer intercâmbios econômicos e facilitar a importação de
produtos dos membros da entidade.
Nesse quadro, a atenção concedida pelo Brasil à CPLP no governo de
Lula atendideu de maneira satisfatória a histórica conduta da
política externa brasileira que privilegia a cooperação em
detrimento do conflito.
No atual desgoverno Bolsonaro, a incompetência e o pouco caso tem
vindo a liquificar todo o esforço de Lula na consolidação de
alianças e de interesses comuns.
Da CPLP à Comunidade Lusófona: o
futuro da lusofonia
1. Introdução 1 - O encerramento serôdio de um Império que o Estado Novo teimou em
manter, mesmo depois do disfuncionamento do Euromundo (sistema no
qual esse Império se inseria e encontrava justificação), pôs termo a
um relacionamento desigual entre os povos dos territórios por onde
tinha passado o movimento expansionista português.
2 - No entanto, o fim desse Império não implicou o desaparecimento
dos laços que a História se foi encarregando de criar entre os
vários povos dominados e um povo que talvez deva ser definido como
um colonizador colonizado, pois nem a descoberta da rota do Cabo nem
o ouro do Brasil se revelaram suficientes para Portugal passar a
integrar aquilo que é habitual designar como o centro.
3 - Por isso, numa fase em que Portugal já assumira a opção europeia
e vários dos países africanos de língua oficial portuguesa
experimentavam sem sucesso modelos importados do Leste (o seu ponto
de apoio durante a luta pela independência), a palavra ‘Lusofonia’
começou a surgir na língua portuguesa. Aparecimento, aliás, tão
tímido que continua por encontrar o seu criador, embora Fernando dos
Santos Neves pareça bem posicionado para reivindicar tal direito,
até pela oposição que enfrentou e venceu quando quis baptizar como
‘Lusófona’ aquela que hoje é a Universidade Lusófona de Humanidades
e Tecnologias, o principal rosto do Grupo Lusófona.
4 - Na realidade, esse vocábulo ainda não surgia na Enciclopédia
Luso-Brasileira de Cultura (editada pela Verbo em 1963 e actualizada
em 1991), no Grande Dicionário da Língua Portuguesa (da Sociedade de
Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado em 1989), no
Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro (da Lello Editores, de
1993), no Dicionário Enciclopédico da Língua Portuguesa (das
Publicações Alfa, de 1992) e no Grande Dicionário da Língua
Portuguesa (publicado pela editora Amigos do Livro, em 1981).
5 - De facto, a palavra só apareceria (embora sem a indicação do seu
criador) mais tarde, no Dicionário Universal da Língua Portuguesa,
da Texto Editora de 1995 e cuja terceira edição é de 1998; no
Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte, 7ª
Edição de 1995; e no Dicionário da Língua Portuguesa, 3ª edição,
editado pela Editora Nova Fronteira em 1999.
6 - O significado do termo ‘Lusofonia’ estava longe de ser
consensual, porque se algumas vozes como as de Adriano Moreira e
Fernando Cristóvão viam a nova palavra como um activo que importava
valorizar porque representava um património de ideias, sentimentos,
monumentos e documentação comum aos povos por onde passara a
expansão e a evangelização portuguesa, também havia quem
considerasse que “a criação da lusofonia, quer se trate da língua,
quer do espaço, não pode separar-se de uma certa carga messiânica,
que procura assegurar aos portugueses inquietos um futuro”
[Margarido 2000:12], ou seja, a Lusofonia representava uma forma
disfarçada de neo-colonialismo.
7 - Santos Neves faria a ponte entre estas duas posições antagónicas,
alertando para as enormes potencialidades da Lusofonia, desde que
passasse “de mero mito, dúbia ideologia ou vã retórica a um Espaço
Lusófono realista”, mas alertando para o perigo de a Lusofonia “não
poder ser, mas não estar automaticamente excluído que seja ou se
torne, uma visão retardada ou camuflada dos colonialismos políticos,
económicos e culturais de antanho (Portugal) ou de agora (Brasil)”
[Neves 1999: 65].
8 - Nessa conjuntura, começou a surgir, ainda que paulatinamente
(porque as reminiscências coloniais ainda eram vincadas), uma ideia
que apontava para a necessidade de destrinçar a relação política
colonizador–colonizado do relacionamento entre os povos e o
reaproximar lusófono passou a ser encarado como necessário e
desejável.
9 - Assim, passadas pouco mais de duas décadas sobre o encerramento
do ciclo imperial português, era chegado o tempo para o
“reconhecimento das afinidades que existem entre aqueles que têm a
língua portuguesa como língua de comunicação ou de cultura”
[Venâncio 1996: 60].
10 - Não constituiu, por isso, grande surpresa que, em 17 de Julho
de 1996, tivesse sido instituída em Lisboa a Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa (CPLP), através da assinatura da Declaração por
parte dos Chefes de Estado de seis dos países-membros (Angola,
Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e Portugal) e pelo
Primeiro-Ministro de São Tomé e Príncipe, em representação do
Presidente da República desse país.
11 - Aliás, talvez seja possível ver nessa assinatura o culminar de
um processo que teve como antecedentes próximos os dois Congressos
das Comunidades de Cultura Portuguesa, realizados em Lisboa em 1964
e na Ilha de Moçambique em Julho de 1967, e a criação do Instituto
Internacional da Língua Portuguesa (IILP) – um desejo materializado
em 1989, em São Luís do Maranhão, que assentou numa ideia inicial de
Adriano Moreira, proposta em 1988 no Recife, no Instituto Joaquim
Nabuco, e reafirmada no discurso de recepção ao Presidente do
Brasil, José Sarney, em Lisboa, na Assembleia da República, também
em 1988.
12 - Neste processo de institucionalização da Lusofonia, nunca
poderá ser esquecida a acção de José Aparecido de Oliveira, um
sonhador pragmático que, através do empenhamento pessoal junto do
poder político e de uma dinamização da sociedade civil dos vários
países lusófonos, conseguiu cravar uma lança na lua [Braga 1999].
13 - No entanto, a afirmação da comunidade (tanto nos países-membros
como nos fora internacionais) tem sido demasiado lenta, como a pouca
visibilidade da organização deixa perceber, situação que levou
Santos Neves a considerar a CPLP como um nado-morto, embora na
esperança que, face à dureza da afirmação, os vários Estados-membros
se empenhassem em provar o contrário.
14 - Este ensaio procura compreender o processo que se seguiu à
formação da CPLP, tanto no que diz respeito às dificuldades de
afirmação como no que concerne às várias alterações estatutárias e,
sobretudo, traçar o quadro relativo à situação presente da
organização e perspectivar o seu futuro num Mundo globalizado,
interdependente e mergulhado numa crise que destruiu o paradigma
vigente e dificulta a construção de um novo modelo de relacionamento
entre os povos.
15 - Face ao exposto, o artigo procura resposta para a seguinte
pergunta de partida:
16 - A passagem da CPLP para uma Comunidade Lusófona servirá os
interesses da Lusofonia?
2. A indefinição inicial do projecto da CPLP
1 - Todas as citações dos estatutos têm por base a versão
electrónica disponível no sítio oficial da CP (...)
17 - As indefinições no projecto da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa remontam à sua origem porque, embora a designação oficial
aponte para uma comunidade, o artigo 1º dos estatutos defende que a
CPLP “é o foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da
amizade mútua, da concertação político-diplomática e da cooperação
entre os seus membros”1, ou seja, a organização foi instituída como
um foro e não com uma comunidade, situação que José Aparecido de
Oliveira preferia desvalorizar pois, na sua perspectiva, a CPLP
enquadrava-se perfeitamente no conceito de comunidade teorizado por
Ferdinand Tönnies no longínquo ano de 1887, na obra Gemeinschaft und
Gesselschaft.
18 - Só que Aparecido de Oliveira tinha uma perspectiva de futuro e
uma nobreza de espírito e de coração que, infelizmente, estão longe
de constituir a regra, mesmo para aqueles que não concordam com a
posição de Hobbes, segundo a qual o homem é visto como lobo do
homem.
19 - Em nome da primeira dessas qualidades, nunca admitiu
publicamente que, tendo consciência da impossibilidade de
concretizar na íntegra o modelo que melhor servia os interesses da
Lusofonia, aceitara aquilo que a conjuntura tornava possível, na
esperança que o futuro lhe concedesse a oportunidade de completar o
seu sonho.
20 - Não se tratava de considerar à maneira aristotélica que o
óptimo era inimigo do bom, mas tão-somente de reconhecer que,
passados tão poucos anos sobre o fim do Império, a CPLP teria
obrigatoriamente de representar um processo e não um acto.
2 - Segundo entrevista concedida para a Tese de Doutoramento do
autor – vide Pinto 2005: 308.
21 - Afinal, Aparecido sabia bem que, quando assumia que a ideia da
CPLP lhe tinha surgido depois do “restabelecimento da democracia em
Portugal, uma vez que pretendia ajudar a constituir um espaço de
cooperação em que a democracia estivesse sempre presente”2, estava
mais no campo do desejo ou da esperança futura do que no âmbito da
realidade, como a situação política de vários dos PALOP fazia
questão de provar.
22 - A segunda qualidade mandou-o viver num silêncio dificilmente
partilhado pela tristeza derivada do facto de a criatura se ter
voltado contra o criador, quando viu ser inventado (à última hora e
para servir interesses que nada tinham a ver com a CPLP) um critério
alfabético que lhe retirou a possibilidade de ser o primeiro
Secretário Executivo da CPLP, situação que o seu Brasil natal não
viria a corrigir quando lhe coube designar a personalidade que
deveria ocupar o cargo entretanto deixado vago por Marcolino Moco.
23 - Na verdade, a CPLP não constava entre as prioridades da
política externa do novo governo brasileiro, elemento que se
encarregou de prolongar a fase de limbo de uma organização [cf.
Chacon 2002: 47] que, desde o início, não fora vista da mesma forma
por todos os Estados-membros.
24 - De facto, a hierarquização das prioridades (elemento que consta
em anexo) não deixava dúvidas sobre o que cada país desejava com a
criação da CPLP, pois Cabo Verde, a Guiné-Bissau, Moçambique e São
Tomé e Príncipe elegiam como primeira prioridade o estímulo ao
desenvolvimento económico, enquanto Angola e o Brasil colocavam a
cooperação técnico-cultural no lugar cimeiro e Portugal privilegiava
a concertação político-diplomática.
25 - Voltando ao Embaixador Aparecido de Oliveira, os
Estados-membros da CPLP desperdiçaram todo o activo ou capital de
entusiasmo militante, de simpatia e de competência sobejamente
evidenciado nas suas visitas oficiais para apresentação do projecto
(Guiné-Bissau, de 28 de Março a 5 de Abril de 1993; São Tomé e
Príncipe, em 27 e 28 de Abril de 1993; Cabo Verde, de 8 a 13 de
Maio; Moçambique em 1994) e nas mesas-redondas promovidas para a
discussão do mesmo (no Rio de Janeiro, em Outubro de 1993; em
Lisboa, em Dezembro de 1993; em Luanda, em Janeiro de 1994; em Cabo
Verde, na segunda semana de Junho de 1994; um seminário em Maputo,
ainda em 1994; finalmente, em Brasília, em 28, 29 e 30 de Outubro de
1994).
26 - Face às indefinições indicadas, não admira que a CPLP fosse
praticamente desconhecida, tanto a nível interno dos
Estados-membros, como no que concerne à comunidade internacional,
designadamente no que diz respeito às integrações regionais de que
os vários países lusófonos faziam parte.
27 - Ora, como forma de inverter essa situação, a CPLP foi
procedendo a alterações estatutárias que serão objecto de estudo no
item seguinte.
3. As principais alterações estatutárias da CPLP
28 - As alterações estatutárias, no que diz respeito ao
estabelecimento de novos órgãos, podem ocorrer aquando das
Conferências de Chefes de Estado ou de Governo que se realizam,
ordinariamente, de dois em dois anos, ou durante os Conselhos de
Ministros que acontecem anualmente.
29 - A maior alteração verificou-se logo em 2002, quando Timor-Leste
(primeiro país independente do século XXI) foi admitido como membro
de pleno direito, situação que levou a que a CPLP passasse a contar
com oito membros.
30 - No que concerne às alterações ao nível dos órgãos, na IV
Conferência (realizada em Brasília, em 2002) foram estabelecidos
como órgãos adicionais da CPLP as Reuniões Ministeriais Sectoriais e
a Reunião dos Pontos Focais da Cooperação. Mais tarde, em 2005, o X
Conselho de Ministros estabeleceu como órgão adicional o Instituto
Internacional de Língua Portuguesa (IILP) e o XII Conselho de
Ministros, reunido em Lisboa em Novembro de 2007, tomou igual
resolução relativamente à Assembleia Parlamentar da CPLP.
31 - Como se constata, dos quatro novos órgãos apenas a Assembleia
Parlamentar o é verdadeiramente, pois os restantes três já existiam
só que não faziam parte dos órgãos previstos no acto da criação.
Aliás, também a nível do Secretariado Executivo se verificou uma
alteração, porque o cargo de Secretário--Executivo Adjunto (que
tanta celeuma provocara, devido à incompatibilidade de Dulce Maria
Pereira com o seu Secretário-Executivo Adjunto, situação que levou à
divisão de pastas) terminou na Cimeira de Bissau de 2006, sendo
substituído pelo de Director-Geral.
32 - Com estas alterações, sobretudo a última, a CPLP procurou
ganhar um maior pragmatismo porque o Director-Geral (a quem compete,
sob orientação do Secretário Executivo, a gestão corrente,
planeamento e execução financeira, preparação, coordenação e
orientação das reuniões e projectos activados pelo Secretariado) não
é indigitado por um Estado-membro, como acontecia com o
Secretário-Executivo Adjunto, mas recrutado entre os cidadãos
nacionais dos Estados-membros, mediante concurso público, pelo prazo
de 3 anos, renovável por igual período.
33 - Além disso, as reformas indicadas também procuraram resolver as
dificuldades decorrentes da necessidade de articulação da cooperação
bilateral com a multilateral e o problema daquele que vinha sendo
apontado como um elefante branco, o IILP, pois não bastou pintar de
cor-de-rosa a casa oferecida por Cabo Verde e recuperada por
Portugal para que o IILP tivesse garantido um futuro da cor das suas
instalações.
3. Citação feita a partir de uma entrevista concedida ao autor. Vide
Pinto 2007: 233.
34 - Como o anterior Secretário-Executivo Luís Fonseca denunciou, “o
Instituto terá de ser tomado mais a sério pelos Estados”, pois “não
se pode esperar que o Instituto possa ter o desempenho ou
protagonismo que seria normal esperar-se de uma organização como
essa, se não tiver os recursos – e os Estados têm sido bastante
avaros em termos de disponibilização de recursos”
35 - Aliás, parece desejável que, a exemplo daquilo que se verifica
para a escolha do Director-Geral, os estatutos do IILP venham a ser
objecto de alteração, terminando com a rotatividade para o cargo de
Director e cedendo lugar a um concurso internacional destinado a
essa selecção.
36 - Para o presente artigo torna-se, ainda, importante salientar
uma outra alteração estatutária que se prende com a criação do
Estatuto de Observador na II Cimeira na Cidade da Praia em Julho de
1998 e, em 2005, no Conselho de Ministros da CPLP de Luanda, das
categorias de Observador Associado e de Observador Consultivo, pois
essa criação permitiu uma maior abertura da CPLP.
37 - Assim, logo no XI Conselho de Ministros, reunido em Bissau
(Julho de 2006), foi recomendada a atribuição do Estatuto de
Observador Associado à República da Guiné Equatorial e à República
da Ilha Maurícia, tendo o Senegal recebido esse mesmo Estatuto na
Conferência de Chefes de Estado e de Governo, realizada a 25 de
Julho de 2008, em Lisboa.
38 - Além disso, outros Estados, como Marrocos, Andorra e Filipinas,
já manifestaram o desejo de ascenderem a essa categoria e alguns
países, como a Croácia, a Roménia, a Ucrânia, a Indonésia e a
Venezuela, colocam nos seus horizontes próximos a obtenção desse
estatuto.
39 - No que se refere à criação do estatuto de Observador
Consultivo, cujo regulamento foi aprovado pela XIV Reunião do
Conselho de Ministros da CPLP (Cidade da Praia, 20 de Julho de
2009), permitiu à comunidade uma maior ligação à sociedade civil,
como se comprova pelo facto de quase meia centena de fundações,
universidades, institutos, associações e outras instituições
representativas dessa sociedade fazerem parte da lista de
Observadores Consultivos.
40 - Ainda no que aos Observadores Consultivos diz respeito, o facto
de a CPLP ter sede em Lisboa talvez explique que a larga maioria
desses Observadores Consultivos também estejam sedeados na capital
portuguesa, embora nesse estatuto também se integrem fundações
localizadas no Brasil, em Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e
Macau.
41 - Talvez fruto desta abertura à sociedade civil e da pressão que
esta acaba por fazer junto dos detentores do poder, não foi apenas a
nível estatutário que a CPLP evolucionou, pois o mesmo se verificou
no que concerne à vontade individual de vários Estados-membros,
matéria que será desenvolvida no próximo ponto.
4. As mudanças derivadas das vontades individuais
42 - Em 2009, o Movimento Internacional Lusófono elegeu como
personalidade lusófona do ano o Embaixador Lauro Moreira, então
chefe da Delegação do Brasil junto da CPLP, uma comitiva numerosa
que funciona separada da Embaixada do Brasil em Portugal.
43 - Essa distinção premiou o labor deste diplomata muito ligado
(não apenas emocionalmente) a José Aparecido de Oliveira. Embora
Lauro Moreira não o reconheça, pois coloca a questão mais do ponto
de vista pessoal do relacionamento de Aparecido com algumas
personalidades da nova administração brasileira, a distinção revelou
que o Brasil, sob a presidência de Lula da Silva, decidira
finalmente colocar a CPLP entre as suas prioridades, reconhecendo a
razão que assistia a Santos Neves quando, num momento anterior,
denunciara que as elites brasileiras ainda não tinham compreendido
que não haveria Lusofonia sem o Brasil, mas que, sem a Lusofonia, o
Brasil continuaria a ser o eterno país do futuro adiado.
44 - Aliás, esta alteração não foi apenas do lado brasileiro, pois
vários outros países, designadamente Portugal, a Guiné-Bissau e
Timor-Leste também passariam a contar com embaixadores permanentes
junto da CPLP, situação preferível àquela que se verificara na fase
anterior em que as embaixadas cediam, por sua iniciativa, os
embaixadores, mas podiam a qualquer momento exigir o seu regresso. 45 - Aliás, nesse período, o reduzido número de embaixadores junto
da CPLP fazia com que cada um deles tivesse de assessorar várias
áreas, acabando por não se especializar em nenhuma delas. Como o
povo se encarregou de proverbiar, eram “pau para toda a obra”.
46 - Voltando às nomeações de embaixadores permanentes, convirá
frisar que entre a nomeação de Lauro Moreira, ocorrida em Julho de
2006, e a segunda indigitação, a de Apolinário Mendes de Carvalho
feita pela Guiné-Bissau em Outubro de 2007, passou mais de um ano.
Este elemento volta a apontar para a forma pouco homogénea como os
vários membros continuavam a ver a comunidade, até porque não parece
verosímil que no conjunto dos países da CPLP fosse a Guiné-Bissau
aquele que dispõe do segundo corpo diplomático mais numeroso.
47 - Parece, igualmente, digno de registo o facto de estas
indigitações terem ocorrido durante o mandato de Luís Fonseca como
Secretário-Executivo, pois se “o hábito não faz o monge”, não é
menos verdade que quando Cabo Verde indicou para o cargo um dos seus
embaixadores mais conceituados, ajudou a criar condições para acabar
com a ‘vida habitual’, isto é, com o marasmo que se estava a
instalar na comunidade. É que Luís Fonseca, tal como Geraldo Vandré,
defende a ideia que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
48 - Certamente que uma das últimas alegrias de Aparecido de
Oliveira (apesar da doença severa, sempre acendia um brilho no olhar
quando se falava da CPLP) foi a visita que Luís Fonseca e Lauro
Moreira fizeram a sua casa para lhe dar conta dos novos caminhos que
a comunidade se propunha trilhar.
4. Afirmação proferida em entrevista concedida ao autor. Vide Pinto
2005: 678.
49 - Afinal, era o reassumir de uma ideia que fora sua, embora a
modéstia o levasse a recusar protagonismos para os quais não se
considerava fadado. Para ele havia figuras muito mais importantes,
como “Agostinho da Silva e Darcy Ribeiro [que] iluminaram o
caminho”4.
50 - Porém, as vontades individuais já se vinham manifestando desde
há vários anos, como se comprova pelas contribuições voluntárias
feitas por alguns Estados-membros e destinadas ao funcionamento do
Instituto Internacional da Língua Portuguesa. Nesse âmbito, o
contributo tem recaído sobretudo em Angola, Portugal e no Brasil,
situação que encontra justificação nas realidades económicas dos
vários membros e que não parece merecer algumas reservas feitas
pelos analistas.
51 - Ainda no que às iniciativas individuais de cada Estado-membro
diz respeito, não pode deixar de ser mencionada a decisão de Cabo
Verde de inscrever na sua Constituição o estatuto de cidadão
lusófono. No entanto, o exemplo não frutificou e a semente parece
ter-se perdido, pois os políticos e os juristas dos oito
Estados-membros ainda não conseguiram montar o Estatuto de Cidadão
da CPLP.
52 - Por isso, incomodado com esta morosidade voluntária, Santos
Neves [2007: 3] deu largas ao seu descontentamento servindo-se das
palavras de Cícero nas Catilinárias “até quando continuarão os
Estados de Língua Portuguesa e respectivas burocracias a abusar da
nossa paciência lusófona?”. Infelizmente, a pergunta ainda não teve
resposta.
5. De uma comunidade de países a uma comunidade de povos
53 - Indicadas as características mais relevantes que têm marcado a
vida da CPLP, importa, agora traçar um estudo prospectivo da
comunidade, de forma a acautelar esse futuro, ou seja, como forma de
dar cumprimento à Lusofonia que interessa.
54 - Ora, a primeira constatação a fazer prende-se com a necessidade
da CPLP (provavelmente através do IILP) investir mais na promoção da
língua portuguesa ao nível das organizações internacionais, como
língua de trabalho ou, preferencialmente, como língua oficial. Além
disso, urge implementar uma política de ensino da língua portuguesa
fora dos países da CPLP, designadamente nos países onde as diásporas
lusófonas detêm uma presença significativa, ou onde camadas da
população se sintam atraídas pela aprendizagem da língua de Camões,
de Craveirinha, de Viriato da Cruz, de Jorge Amado, de Baltazar
Lopes…
55 - Desta promoção da língua portuguesa deverá fazer parte uma
estratégia lusófona que permita ao Brasil, aquando da inevitável
reformulação do Conselho de Segurança da ONU, um lugar como membro
permanente. Se esse desiderato for alcançado, o português
tornar-se-á língua oficial da Organização das Nações Unidas.
56 - De facto, convém não esquecer que o grupo designado por “Coffee
Club”, formado pela Itália, Coreia do Sul, Argentina e Paquistão,
pretende unir esforços no sentido de impedir que os respectivos
vizinhos entrem para o Conselho de Segurança, situação que, no caso
do Brasil, ainda assume mais gravidade conhecida que é a pouca
vontade mexicana para que a potência emergente lusófona assuma um
lugar de destaque na comunidade internacional.
57 - Uma outra constatação tem a ver com uma questão que se arrasta
desde os primórdios da CPLP. De facto, como a própria designação
explicita, trata-se de uma comunidade de países e não de povos,
factor que impossibilita a adesão de regiões com grandes afinidades
com a cultura lusófona, mas com vínculo político a outros Estados,
como são os casos da Galiza (a mãe da Lusofonia), de Macau, de
Malaca, de Goa e de Casamansa.
58 - Aliás, Fernando Cristóvão, o criador dos “três círculos da
lusofonia”, reconhece a importância dessas regiões ao englobá-las,
juntamente com os oito Estados-membros da CPLP, no primeiro círculo
ou no núcleo da Lusofonia. Por isso, há que ter em conta as palavras
do Presidente das Irmandades da Fala da Galiza e de Portugal, José
Fontelo, quando não enjeita a responsabilidade de ajudar a “manter
uma Lusofonia europeia coesa, de 20-25 milhões de
galego-portugueses, sem esquecer os contingentes migratórios nossos
que pelas Europas andam, além de outras partes do mundo” [Fontelo
2000:134].
59 - Uma última constatação tem a ver com o facto de os estatutos,
no artigo 6º, preverem que “para além dos membros fundadores,
qualquer Estado, desde que use o Português como língua oficial,
poderá tornar-se membro da CPLP, mediante a adesão sem reservas aos
presentes Estatutos”, desde que a aprovação dessa adesão seja “por
decisão unânime da Conferência de Chefes de Estado e de Governo”.
Esta disposição estatutária poderá vir a tornar-se perigosa para a
comunidade.
60 - De facto, a Guiné Equatorial, um dos países interessados em
tornar-se membro de pleno direito da CPLP, já instituiu o português
como mais uma das suas línguas oficiais (as outras são o espanhol e
o francês) e, por isso, deseja que esse estatuto lhe seja concedido.
61 - No caso de merecer a aprovação unânime dos Estados-membros,
este pedido de adesão poderá vir a traduzir-se num problema para a
CPLP, uma vez que o relatório de 2010 da Fundação Mo Ibrahim,
relativo à boa governação (um índice que resulta do estudo de 88
variáveis) coloca a Guiné Equatorial na 46ª posição entre os 53
países africanos, com um índice de apenas 34,7 e com o “pormaior” de
nenhuma das rubricas consideradas ter obtido classificação positiva.
62 - Na verdade, em África, a Guiné Equatorial detém a penúltima
posição no que concerne à participação e direitos humanos com apenas
19,1; a 42ª tanto no que diz respeito à oportunidade económica
sustentável como ao desenvolvimento humano, com 34,9 e 39,1,
respectivamente; e a 41ª posição relativamente à segurança e
primazia da lei, com 45,7.
63 - Como os estatutos da CPLP, na alínea b) do número 1 do artigo
5º, estipulam a “não ingerência nos assuntos internos de cada
Estado”, a comunidade não poderá a posteriori vir a exigir à Guiné
Equatorial que proceda às reformas necessárias, visando alcançar a
democracia
64 - Assim sendo, a Conferência de Chefes de Estado e de Governo
deverá ter muita atenção no que concerne não apenas a esta, mas a
futuras solicitações de adesão, sendo certo que este cuidado não se
destina a fazer da comunidade um compartimento-estanque (situação
altamente condenável por parte de uma Lusofonia que se pretende
ecuménica), mas sim a não delapidar a imagem da comunidade.
65 - Aliás, os países da CPLP que já dispõem de um índice de boa
governação bom ou aceitável terão de ter presentes as dificuldades
que sobretudo dois dos membros da comunidade ainda apresentam nesse
âmbito. À guisa de conclusão
66 - Terminada a exposição, é tempo de saber qual o sentido da
resposta encontrada para a questão colocada na Introdução e que aqui
se repete:
67• A passagem da CPLP para uma Comunidade Lusófona servirá os
interesses da Lusofonia?
68 - Os argumentos apresentados, tanto no que concerne às
dificuldades de afirmação da CPLP, como no que diz respeito às
alterações estatutárias que têm vindo a ser postas em prática, numa
conjuntura mundial tecida com malhas de interdependência, apontam no
sentido de uma resposta afirmativa.
69 - Na verdade, a exemplo do que se verificou relativamente à
implementação do acordo ortográfico, quando alguns portugueses
renitentes tiveram de perceber que não eram donos mas sim condóminos
da língua (pois esta pertence a todos aqueles que a usam), também
parece chegado o momento de os oito Estados-membros da CPLP
perceberem que a Lusofonia não constitui um exclusivo ou um
monopólio seu. Aliás, o facto de a designação actual ser a de uma
Comunidade dos Países e não uma Comunidade de Países pode ser vista
como uma visão patrimonialista e um desejo excessivo de posse.
70 - Assim sendo, impõe-se a construção de uma Comunidade Lusófona
onde haja lugar para países, mas também para comunidades e regiões,
ou seja, para os povos que se revêem no passado, mas também (ou
principalmente) no presente e no futuro da cultura lusófona.
71 - De facto, o Estatuto de Observador Associado, apesar de
constituir uma iniciativa meritória, seguiu o modelo do Estatuto de
Membro da CPLP, uma vez que apenas contempla países. Este elemento
circunscreve a ‘Lusofonia Oriental’ apenas a Timor-Leste,
desamparando as comunidades que continuam a reclamar o
reconhecimento da sua matriz lusófona.
72 - Por isso, parece aconselhável a alteração do critério, no
sentido de reconhecer aos povos e comunidades filiados na cultura
lusófona ou que com ela mantêm afinidades o direito de integrarem a
Comunidade Lusófona.
73 - Não será um processo fácil, até porque alguns lusófonos parecem
mais apostados em erguer muros do que em construir pontes de
entendimento. Mas é um processo necessário, para que a Lusofonia
atinja o patamar que, se houver vontade política, estará ao seu
alcance.
74 - Como o povo proverbializa: “Seja bem-vindo quem vier por bem!”
Autor: José Filipe Pinto
CPLP: Paradoxo certo ou futuro incerto?
A nossa comunidade tem muitas datas de nascimento, como o filho
escondido de quem não se sabe a história certa do aparecimento.
Oficialmente, foi a 17 de Julho de 1996 que no Centro Cultural de
Belém, em Lisboa, se assinaram os documentos constitutivos da mais
nova Comunidade linguística. Mas para trás ficavam versões várias de
paternidade, portuguesas, brasileiras e também africanas. Em
qualquer uma das versões dá-se destaque ao papel que cada parte
jogou, numa animação pouco condizente com o arrastamento de todos
para que de facto se investisse nesta formação como coisa principal.
2A - comunidade tem estatutos, como se deve, que determinam que se
trata de “um foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da
amizade mútua, da concertação político-diplomática e da cooperação
entre os seus Membros”. Estas premissas existenciais são importantes
para melhor se entender o que é e o que não é a CPLP. Um foro e
normalmente uma ligação ténue, não necessariamente
institucionalizada de forma rígida. E um espaço que pode servir para
intercâmbios e trocas de opinião e de experiência, mas não implica
necessariamente uma dimensão política e regimental firme.
3A - profundar a amizade é algo um pouco mais emotivo que racional.
Amizade entre países é uma formulação diplomática desprovida de
qualquer especificidade. É o que se coloca em qualquer documento ou
comunidade, até com países com os quais se mantém um intercâmbio
cada dez anos. No entanto, ao ser considerado privilegiado,
espera-se algo mais, que pode ser traduzido apenas num desejo não
corroborado com nenhum arranjo preconcebido. Nada nos estatutos ou
na postura da criação da CPLP deixa transparecer como poderia ser
lido tal hipotético desejo.
4A - concertação político-diplomática é algo técnico e preciso, que
na realidade pode ser feito por um grupo de países com interesses
comuns. Parece ser certo que a CPLP conseguiu essa concertação em
momentos importantes para os seus membros, embora também seja
verdade que a descontinuidade geográfica da Comunidade tem sido um
factor mais centrípeto que centrífugo.
5 - Esta é, pois, a cooperação entre os membros. Por razões óbvias,
ela tem de (e deve) ser desequilibrada, no sentido em que os que têm
mais devem apoiar os que têm menos. No caso concreto da Comunidade,
o índice de desenvolvimento de Portugal e o tamanho do Brasil são
factores de monta para que os dois ofereçam muito mais que os demais
reunidos. O veredicto nem sempre mostrou essa certeza.
6A - CPLP tem sido marcada pelo mito fundador, como o são todas as
instituições e países.
7 - O Brasil carrega o peso do seu desprezo aparente pela lusofonia,
no momento crucial da sua fundação como a suposta vertente
privilegiada. Ninguém nega o papel fundamental que algumas
personalidades brasileiras (como o embaixador Aparício de Oliveira
ou os Presidentes Itamar Franco e José Sarney) tiveram no cerimonial
da constituição. Mas isso não chega e o Brasil enquanto país ficou
sempre a dever à Comunidade um empenho mais profícuo, até bem
recentemente, quando uma nova dinâmica surgiu com a administração do
Presidente Lula da Silva. A vocação Atlântica do Brasil e o seu
papel na emergência de um novo Sul ajudam a antever um novo papel
para a CPLP.
8 - Portugal fica sempre marcado pelas associações de que quer fazer
da CPLP o que a Grã-Bretanha, ou a França fizeram da Commonwealth ou
da Francophonie. Em ambos os casos a liderança do país europeu
ancora é indisputável, mas o mesmo é difícil de imaginar no espaço
lusófono. A opinião pública portuguesa revela à luz do dia
aspirações que ficam encobertas em negociações delicadas sobre
protagonismos. Quer muitas vezes uma política de língua imperial,
uma margem de influência que irrita por se tratar de uma lembrança
do colonialismo tardio.
9 - Os países africanos membros da Comunidade também têm os seus
sobressaltos de adolescência, querendo afirmar-se quando é
desnecessário e emprestando à Comunidade um utilitarismo que esta
não pode assumir por falta de meios equivalentes a outras congéneres.
Estes países ainda buscam as suas identidades e pernoita na
lusofonia a ideia de que ela pode contrapor a necessidade de
diferenciação do recém-independente.
10 - Finalmente, o último convidado da festa (Timor Leste) tem na
sua liderança o desenho de contradições entre a ligação mais
estreita a uma Comunidade ainda mais longínqua geograficamente e os
imperativos pragmáticos da vizinhança. 11 - Poderão estes paradoxos ser resolvidos com amizade? Mesmo com
carradas de amizade, a realidade da descontinuidade acabará por
impor-se de forma dramática e sem hesitações. A não ser que se
invista seriamente num conjunto de factores que sejam de facto
únicos.
12 - A actual interconectividade do mundo lembra-nos que cada vaga
da globalização nos aproxima mais, uns dos outros, e nos permite
aceder a mais informação. Sem uma ampla liberdade e aumento das
oportunidades, não podemos transformar esse desenvolvimento da
informação em algo que melhore as nossas vidas e nos dê maior
felicidade. Admitindo que estamos a entrar num patamar de maior
conhecimento e individualidade, é natural que as nossas ansiedades e
certezas nos projectem para redutos de segurança identitários. Cada
vez mais esse desejo de encontrar referências comuns se faz com
formas novas de comunicação, muitas no domínio do virtual. Uma
língua e cultura com ambições globais, marcando-se num espaço com
descontinuidade geográfica, só podem sobreviver e crescer com o
pleno uso das novas linguagens e tecnologias.
13 - A CPLP sente-se quando um grupo de cidadãos de países lusófonos
encontra pontos de referência comuns. Não quando se organiza uma
reunião formal de concertação político-diplomática Para fortalecer a
base do relacionamento, pode-se traduzir amizade num conjunto de
acções concretas A meu ver, é sobretudo na área cultural e nas
indústrias criativas que se abrem potencialidades. Sem essa
alavanca, a Comunidade não será muito diferente de outros
agrupamentos de que nos lembramos apenas ‘quando dá jeito’.
14 - As oportunidades e perspectivas da CPLP são quase ponto
obrigatório nas reuniões várias dos órgãos da Comunidade. Mas o que
poderá mudar o futuro comum é o engajamento concreto na utilização
dos veículos da língua que possibilitem a sua sobrevivência. Os
exemplos de anglicismos são a parte mais evidente de um iceberg de
contradições. O paradoxo interno que demonstra o que a sociedade
considera valorizante e aspira, querer ser reconhecido por quem fala
inglês, não o seu parceiro da Comunidade. É uma batalha complexa,
não específica ao nosso espaço, como demonstra a constante polémica
do excepcionalismo cultural francês. Mas, como esse exemplo bem
demonstra, a resposta está no desenvolvimento de capacidades
informáticas, na dinâmica das Academias responsáveis por acordos
ortográficos, no investimento forte nos intercâmbios culturais, na
formatação de referências criativas ligadas às novas tecnologias.
15 - A esquizofrenia é uma doença mental em que se perde o contacto
com a realidade, vivendo-se num mundo imaginário, com fragmentação
da personalidade. É a doença mais constrangedora porque se carrega
pela vida inteira. À escala de um grupo, ninguém se atreve a falar
de comportamento esquizofrénico, é demasiado pesado e negativo. Por
isso mesmo, as instituições tentam sempre assentar os seus pés
(neste caso, as suas decisões) em algo realizável e perene. O futuro
da CPLP será aquele que assenta na possível, não esquizofrénica,
ambição dos seus membros.
Autor: Carlos Lopes
Breve ensaio sobre
lusofonia: convergências e divergências
Ao começar a estruturar este texto tive em conta, talvez, dois
aspectos. Um: que a lusofonia, tal como a angolanidade (é um
exemplo) ou a bantuofonia são conceitos baseados em manifestações de
sociabilidade. Acontece que, por razões que por ora vamos adiar, o
factor comunicação emergiu ultimamente a propósito da criação da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). 2 - Há quem defenda, por seu lado, que estes conceitos se relacionam
com o carácter da nacionalidade dos indivíduos. No plano geral, têm
a ver igualmente com os seus provérbios, lendas e histórias
transmitidas de geração em geração. Há ainda que acrescentar uma
filosofia de vida característica de povos e suas origens.
3 - As minhas notas sobre a CPLP, algumas perdidas e outras
resgatadas, foram publicadas ou lidas em diferentes jornais de
diferentes países. Confesso piamente que não sei dizer como
procederei desta vez para acrescentar mais qualquer coisa ao
convencimento do leitor. Não pretendo redigir um texto à guisa de
confessionário.
4 - Mais do que a língua portuguesa, essa organização
tri-continental visou na sua génese criar um mercado de transacções
comerciais – em que Angola, dadas as suas peculiaridades materiais,
tidas como ainda por explorar em grande medida, era, pois, um alvo a
conquistar.
5 - Isso levou a mim e a outros observadores, a duvidarmos da real
orientação da CPLP. Desde logo porque o processo que conduziu à sua
constituição em organização propriamente dita começou inquinado: em
alguns países, soube-se da sua fundação às vésperas. Mas os
governos, mais do que as sociedades civis dos países membros,
estavam com pressa.
6 - Nascem ideias, morrem ideólogos. A respeito da CPLP, advertimos
por diversas vezes que a sua raiz romântica não era razão suficiente
para selar um pacto inter-nações. Tem, ademais, contra si, a
intangibilidade física, que leva as pessoas a circularem e a
comunicarem-se intensamente, diariamente.
7 - Todavia, os partidários da globalização saltaram-nos em cima. A
descontinuidade geográfica, atacaram, é facilmente superável nos
nossos dias pela velocidade de comunicação proporcionada pelos
modernos meios de comunicação e relacionamento via Internet. Começa
a partir daqui uma discussão tecnológica, mas também humanista: que
é o que, na verdade, está no centro de toda a nossa argumentação?
8 - A princípio, a CPLP era para ser um pacto político que
perseguia, afinal, interesses mercantis. Na escala de valores
assumida pela organização, a língua portuguesa aparecia numa cotação
em alta, a tal ponto que se tornou o próprio pilar da sua fundação.
9 - Mas se formos a ver a fundo, tal não corresponde à realidade
objectiva da maior parte dos países membros: nenhum dos países, à
excepção (ainda assim discutível) do Brasil e de Portugal, têm a
língua portuguesa como a língua primária dos seus habitantes.
10 - Vejamos o segundo aspecto, como mencionei no início. A
lusofonia ou a angolanidade ou a moçambicanidade afere-se a partir
da observação da prática de um conjunto de manifestações de
sociabilidade das pessoas: gostos similares por comidas, o modo de
prepará-las e o modo de consumi-las, por música, suas letras e
melodias, e a dança – quer sejam colectivas, quer sejam
individualizadas.
11 - O costume de sunguinar é tipicamente africano. Tem a ver com
uma quietude crepuscular das aldeias elevada a uma dimensão de
lembranças e inquietações metafísicas, que ocorrem não na mesma
intensidade ou pelo menos na mesma relação com a vida de um europeu.
12 - É também como antecipação de boas colheitas e comida farta: no
outro ângulo, muito interessante, está ligado ao ritual de iniciação
sexual dos jovens. É no súnguino que as conquistas começam a
desenrolar-se. No fundo, uma autorização tácita.
13 - Todas essas manifestações são subsidiárias do tipo físico ou
comportamental do indivíduo. Logo: um português não dançará a Njimba
se não lha ensinarem e um angolano, o Vira. Um conhecido escritor
angolano costuma repetir que não consegue ficar lá fora mais de três
dias: tem que voltar, para “recarregar-se” com uma boa funjada.
14 - Digo, a terminar, que o “capote” da lusofonia não pode servir
para suprimir a diversidade étnica e linguística dos países de
língua oficial portuguesa. Ou seja: a individualidade da
personalidade de cada um não pode ser abolida. Noutro texto já
defendi (e relembro aqui) a paridade entre o português e as línguas
nacionais de todos.
Kajim Ban-Gala
Perguntas e Respostas:
«Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados-Membros da CPLP» 13-01-2022
O «Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados-Membros da CPLP» foi
aprovado na XXVI Reunião do Conselho de Ministros da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP), decorrida, em Luanda, Angola, no
dia 16 de julho de 2021.
O Acordo entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2022 nos Estados que
entregaram os respetivos instrumentos de ratificação no Secretariado
Executivo da CPLP, nomeadamente, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe,
Portugal e Guiné-Bissau. Em janeiro de 2022, o Secretariado
Executivo recebeu o depósito do instrumento de ratificação de
Moçambique, sendo que entrará em vigor no dia 1 de fevereiro de
2022.
O Secretariado Executivo da CPLP congratula-se com a rapidez
verificada no processo interno de ratificação em cada um destes
Estados-Membros e, face a diversos pedidos de esclarecimento
recebidos, apresenta respostas às seguintes perguntas frequentes:
1 - O que prevê o Acordo sobre a Mobilidade?
O Acordo sobre a Mobilidade é um Acordo-quadro que estabelece a base
legal sobre a qual se construirá uma maior mobilidade e circulação
no espaço da CPLP. Os Estados-Parte passam a poder celebrar acordos
adicionais em matéria de mobilidade, tendo a liberdade de escolher
as modalidades de mobilidade que pretendem aplicar (Estada de Curta
Duração CPLP; Estada Temporária CPLP; Visto de Residência CPLP e
Residência CPLP); o grupo de beneficiários; assim como os outros
Estados-Parte com quem pretendem estabelecer a parceria.
2 - Que países já notificaram a CPLP da respetiva ratificação do
Acordo?
Até 31 de dezembro de 2021, deram entrada no Secretariado Executivo
da CPLP os instrumentos de ratificação de Cabo Verde, São Tomé e
Príncipe, Portugal e Guiné-Bissau. Em janeiro de 2022, já deu
entrada no Secretariado Executivo o depósito do instrumento de
ratificação de Moçambique.
3 - Qual a data de entrada em vigor do Acordo?
A entrada em vigor do Acordo ocorreu no dia 01 de janeiro de 2022,
mas apenas para os quatro Estados indicados na resposta anterior
(i.e., os Estados-Parte). Para os restantes Estados, a entrada em
vigor ocorrerá após o depósito dos respetivos instrumentos de
ratificação no Secretariado Executivo da CPLP.
4 - Qual o efeito da entrada em vigor nos Estados?
A partir de 01 de janeiro de 2022, os Estados-Parte começam a
implementar o Acordo, isto é, passam a poder estabelecer, entre si,
as parcerias referidas na resposta 1.
5 - Quando é que os cidadãos dos Estados-Membros poderão beneficiar
das medidas previstas no Acordo?
O objetivo do Acordo é aumentar a mobilidade para os cidadãos dos
Estados-Membros no espaço da CPLP. Contudo, o ritmo e a medida exata
deste aumento, para cada cidadão em concreto, dependerá da medida de
integração no Acordo do seu Estado de origem (i.e., da conclusão do
respetivo processo de ratificação) e, posteriormente, das parcerias
que o Estado de origem venha a estabelecer, no quadro do Acordo.
De notar que, tal como referido na resposta 1, os Estados têm a
liberdade de decidir as categorias dos beneficiários (p. ex.,
agentes do Estado, professores, estudantes, agentes culturais, entre
outros); as modalidades de mobilidade aplicáveis (p. ex., a isenção
de vistos, entre outras); assim como os Estados com quem pretendem
celebrar a parceria (p. ex., o Estado A decide estabelecer uma
parceria com o Estado B).
6 - Está prevista no Acordo a isenção de vistos (ou “livre
circulação”) entre os Estados da CPLP?
Sim, a isenção de vistos é uma das modalidades previstas no Acordo.
No entanto, a aplicação de tal modalidade necessitará sempre de
parcerias adicionais celebradas entre os Estados-Parte, prevendo, em
concreto, a isenção de vistos.
7 - Os compromissos internacionais sobre mobilidade em vigor nos
Estados-Membros, estão salvaguardados?
O Acordo reconhece e salvaguarda os compromissos internacionais em
matéria de mobilidade que os Estados-Membros da CPLP assumiram no
quadro da respetiva integração regional. A mobilidade na CPLP será
assim construída sem condicionar os compromissos internacionais de
que os Estados-Membros da CPLP sejam já Partes.
Na ponta da língua: o que é
lusofonia? Etimologia e interpretações críticas Por GABRIEL FERNANDINO | MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA (UFMG) E
BACHAREL EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS (PUC MINAS) 24/09/20
A cada pergunta, no mínimo duas respostas há: aquela breve, enxuta,
outra mais ampla e, às vezes, divagante. No que diz respeito à
resposta curta, a palavra “lusofonia” explica a si mesma. Trata-se
de justaposição das entradas “luso”, que do latim quer dizer
“relativo a lusitano”, e “fonia”, essa já vinda do grego,
equivalente a “língua”. Trocando em miúdos, lusofonia pode ser
entendida como “qualidade daqueles que falam a língua dos lusíadas”,
lusos ou portugueses.
Se a pulga atrás da orelha pulou, fica o rodapé: Lusitânia foi o
nome atribuído a uma província ibérica, correspondente hoje à parte
da Espanha e de Portugal.
Assim como a palavra “lusíadas”, Lusitânia vem de “Lusus”, figura
legendária ligada a Baco e creditada como fundadora mitológica da
região.
Desse literal boca-a-boca etimológico, viria inclusive o título da
magistral obra de poesia épica escrita por Camões nos idos dos
séculos XVI, “Os Lusíadas”... percebem como já passamos à segunda
forma de responder uma pergunta, aquela mais ampla e que incorre na
possibilidade da perda do fio da meada? Façamos, então, neste espaço
curto, alguns sobrevoos que poderiam ser longos.
A lusofonia, celebrada ao 5 de maio, é também entendida como uma
comunidade de 9 países espalhados no globo cuja língua materna,
administrativa ou secundária é o português. Essa população esparsa
de cerca de 280 milhões de pessoas tem corpo institucional na
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, fundada em 1996 com o
objetivo de aproximar os estados-membros por meio da cooperação
financeira e cultural. Por sinal, sabia que a mencionada CPLP
promove uma espécie de Jogos Olímpicos dos falantes de português, os
Jogos da Lusofonia? Se não, calma, assim como ocorreu ao passar a
saber quem foi Lusus, pouca coisa vai mudar em sua vida.
O que talvez mude, ou incomode pelo menos, é a interpretação de
intelectuais, como Adriano Freixo, quem defende que, salvo para
Portugal, a CPLP seria desprovida de sentido para os seus membros.
Para ele, a instituição teria sido originada nos interesses
específicos portugueses, com a busca de reinserção internacional no
cenário de pós-Guerra Fria por meio da aproximação às ex-colônias.
Na mesma linha crítica, o português Boaventura de Sousa Santos
aponta que a CPLP está demasiadamente focada em Brasil e Portugal.
Nem tudo são flores ou mera etimologia, não é?
Atalhando o escrito: afinal, o que é Lusofonia? Bem, mais do que
conceitos aqui entregues, lusofonia parece não ser nem a resposta
curta, nem aquela mais longa, embora permeie ambas. Ao meu lusófono,
parcial e amador ver, lusofonia parece ser uma “vivência”, ou
experiência, que articula tacitamente distintas visões de mundo sob
um mesmo nome que não comporta todas suas particularidades. Falar em
“trama de diferenças”, como afirmou Laura Padilha, ou mesmo em
“lusofonias”, aparenta ser o mais acertado; isso já é, porém, o
pontapé para uma discussão ampla...
Português é o melhor idioma para
a música?
Por Daniel Brazil
O domínio da canção de língua inglesa em todos os cantos do mundo,
impulsionado pelo poder econômico e midiático dos EUA, faz muita gente
pensar que a econômica sintaxe anglo-saxônica é favorável ao formato
canção. Mas será mesmo?
Há línguas que soam mais ou
menos ásperas, guturais, flexíveis, duras ou melodiosas. A canção alemã,
por exemplo, nunca emplacou fora de suas fronteiras. A francesa teve um
período de popularidade, mas foi soterrada pelo rock britânico a partir
dos anos 60. A italiana, muitas vezes excessiva e melodramática, idem. E
a canção brasileira (leia-se bossa nova) sempre foi considera elegante e
elitizada, não se constituindo um sucesso popular em países europeus (Na
América do Sul é diferente, até pelo “poder econômico e midiático”
regional exercido pelo Brasil). Já o samba, mais empolgante, é visto
geralmente como trilha sonora de carnaval, algo folclórico e barulhento.
Ocasionalmente, alguns gêneros
caem na moda, e fazem a festa no chamado Primeiro Mundo. Já foi a
lambada, agora é o forró. Um fã de música brasileira, Mose Hayward,
levantou uma interessante teoria em um artigo que está causando certo
debate na internet. Com o título “Porque o Português é o Melhor Idioma
Para a Música”, o autor elenca uma série de elementos que reforçam a sua
tese. Detalhe: ele é americano, estudou em Barcelona, conhece o Brasil e
fala várias línguas, inclusive a nossa.
Para Hayward, a língua
portuguesa tem uma quantidade enorme de sons vocálicos, que a deixam
mais fluida e melodiosa. O fato de muitas palavras terminarem com vogais
faz com que o(a) cantor(a) fique mais à vontade, podendo flexionar ou
modular a emissão de voz, alongando o som ad libitum. Para esse efeito
também colaboram os ditongos e tritongos, claro.
A quantidade limitada de
consoantes também ajuda. Citando a cantora francesa (de choro e samba)
Cléa Thomasset, ele detecta que usamos as consoantes de forma
percussiva, marcando o ritmo de forma mais expressiva. Vários sambas
sincopados seriam exemplos perfeitos, mas ele destaca Elis Regina
cantando Nega do Cabelo Duro (Ary Barroso) como corolário da tese. No
verso “qual é o pente que te penteia” as consoantes tamborilam como um
tamborim, cabendo a cada intérprete percutir a língua nos dentes com a
intensidade que achar conveniente.
Claro que o “ão” anasalado, com
sua quase exclusiva sonoridade portuguesa, não poderia faltar na
história. Tente fazer um gringo cantar “João Valentão é brigão, pra dar
bofetão, não presta atenção...” e você vai perceber a dificuldade da
coisa pra quem não cresceu familiarizado com este som. O vocábulo
“saudade” também contribui para a diferenciação, porque embora exista
sentimento semelhante em outras línguas, em nenhuma é tão cultuado e
cantado. Para Hayward, “a língua portuguesa tem um vocabulário e uma
atitude construída para celebrar essa ideia de saudade mais do que
qualquer outra.”
Embora não seja um especialista
da área, Mose Hayward arrisca pisar no terreno da linguística. Para ele,
o português não é uma língua tonal, ou seja, “as variações de tom não
geram mudança de significado nas palavras”. Isso deixa o compositor mais
livre, certo de que mudanças de entonação não alterarão o significado da
letra.
Será? Podemos encontra vários exemplos de palavras usadas em tom de
ironia, na música brasileira. Noel Rosa já percebia isso, no início do
século XX. Tente imaginar um Vicente Celestino, sério e compenetrado,
cantando “baleiro, jornaleiro, motorneiro, condutor e passageiro,
prestamista e vigarista, e o bonde que parece uma carroça, coisa nossa,
muito nossa”. A intenção explícita de Noel é jocosa, ao mesmo tempo em
que faz uma crítica ao ufanismo oco. Até “passageiro”, a descrição pode
ser realista e até afetiva. A partir de prestamista, a mudança de tom é
total. É curioso que muitos intérpretes não fazem essa diferenciação,
cantando tudo do mesmo jeito. Desta forma, predomina o tom gaiato do
samba, e é provável que o autor tenha desejado isso mesmo.
Hayward curte a palavra
gostosa/gostoso. Para ele, esta é inequívoca, nunca é usada ironicamente
na canção luso-brasileira. Podemos lhe atribuir vários significados, mas
é sempre algo bom, desejável, desfrutável, saboroso, bonito ou sensual.
Isso também é positivo na hora de construir as canções, de explicitar
sentimentos. Quando falamos numa “bela bagunça”, isso pode ser dito (ou
cantado) de duas formas: uma boa bagunça ou uma bagunça terrível,
horrorosa, como o quarto de teu filho. Mas quando pensamos em “bagunça
gostosa”, é impossível detectar um traço negativo. Já havia pensado
nisso?
O autor conclui atribuindo certa responsabilidade ao contexto geográfico
da língua portuguesa, com suas ramificações em três continentes (Europa,
África e América do Sul), que se influenciam mutuamente. Tese
recorrente, mas discutível. Afinal, o inglês é falado em praticamente
todos os continentes, mas não se torna mais permeável por conta disso.
Por outro lado, a contribuição da cultura negra é visível, tanto aqui
quanto nos EUA. Talvez seja por isso que nas work songs dos negros nos
algodoais do Mississipi as consoantes eram frequentemente engolidas,
tornando as letras mais maleáveis...
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